Tenista argelina emociona com carta aberta a Thiem: “Por favor, não estragues isto”

Ines Ibbou foi top 25 mundial de juniores e atualmente ocupa a 620.ª posição do ranking WTA. A argelina de 21 anos faz, por isso, parte do grupo de jogadores que vão beneficiar do plano de apoio financeiro criado pelos órgãos internacionais do ténis e para o qual os Big Three propõem que os jogadores de elite contribuam. Mas declarações recentes de Dominic Thiem “ameaçam” alterar os contornos do processo de apoio e foi nesse sentido que a jovem tenista decidiu publicar uma carta aberta ao austríaco.

Com uma longa e emocionante mensagem acompanhada de um vídeo de 10 minutos, Ibbou relatou as dificuldades que sentiu — e sente — para construir uma carreira e “cumprir o sonho”.

Da falta de condições aos apoios praticamente inexistentes, os dias a fio passados sozinha pelo mundo fora à procura de voos com várias ligações — sempre a opção mais barata — ou as saudades de uma família que “abdicou de tudo”, a jovem argelina procurou chamar a atenção do austríaco para as desigualdades que tantos jogadores enfrentam. E esclareceu: “Não te pedimos nada, apenas um pouco de respeito pelo nosso sacrifício. Jogadores como tu fazem-me agarrar aos meus sonhos. Por favor, não estragues isto.”

A carta aberta, na íntegra:

“Querido Dominic,

Depois de ler as tuas declarações vi-me a pensar em como seria a minha carreira e a minha vida se estivesse na tua pele. Sim, como é ser o Dominic Thiem? E então comecei a pensar como seria se os meus pais fossem treinadores de ténis e se me tivessem apoiado quando peguei na raquete pela primeira vez, aos seis anos, e me apaixonei instantaneamente pela modalidade.

Enquanto crescia na Argélia, numa família muito modesta e com pais que nada tinham a ver com o ténis, não conseguia deixar de pensar que isso teria ajudado… Mas não te culpo. E deixei de pensar nisso, porque não escolhemos o sítio onde nascemos. Hoje em dia percebo que sou abençoada por ter pais como os meus, que amo mais do que tudo e que não trocaria por nada. Num país como o meu não é fácil para uma mulher ser atleta, e não posso agradecer-lhes o suficiente por me apoiarem e por todos os sacrifícios que fizeram para que eu pudesse perseguir o meu sonho. Se tu soubesses, Dominic…

Apesar de tudo, mesmo se não tive os meus pais como treinadores, pelo menos podemos contar com as instalações locais! Ops… Sabias que na Argélia os torneios juvenis são muito, muito raros e não há um único torneio ITF, ATP ou WTA? Que não há um único treinador de nível internacional? Ou que não há um único court coberto? Não sei como foi para ti, mas para nós, aqui, se chover durante uma semana treinamos a nossa esquerda no ginásio…

E nem falo da qualidade das instalações ou dos courts… Nem sabíamos em que court estávamos a treinar. É relva? É terra? “África”, como dizem…

Mas não me interpretes mal: isto não me parou de encontrar o meu próprio caminho e tornar-me numa das melhores jogadoras do mundo com 14 anos. E ganhei os meus primeiros pontos WTA ao vencer um torneio de 10 mil dólares com essa idade. Bastante impressionante, não é? E tal como tu atingi o topo do ranking mundial de juniores.Não fui top 10, mas fui número 23 do mundo. Nada mal para uma africana, não achas? Era tão improvável que muitos jornalistas me chamaram “o milagre do ténis”, e não era uma piada. “Muito poucos africanos o fizeram antes”, disseram, e ninguém do meu país.

Se naquela altura eu fizesse parte do teu mundo mágico, provavelmente teria chamado a atenção de muitos patrocinadores e a federação teria tomado conta de mim, mas não foi assim. Patrocinadores? Adidas, Nike, Wilson, Prince, HEAD? Nem sequer existem, na Argélia. Para além de alguns equipamentos e apoios de empresas pequenas, só recebi o mínimo para cobrir as minhas participações nos torneios do Grand Slam de juniores.

E, em África, o que um jogador ganha raramente chega à sua conta bancária, se percebes o que estou a dizer…

Pergunto-me o que teria mudado nesse período se eu fizesse parte do teu círculo, se tivesse partilhado o mesmo ambiente e regras, como conseguir decidir qual era a melhor altura para me tornar profissional, por exemplo? Quais são as regras? Ninguém faz a mínima ideia na Argélia! Que impacto teria tido um investimento mais justo na minha carreira? Teria mudado toda a minha vida! Sonho com o dia em que vou ser capaz de comprar um presente para os meus pais…

Era a melhor jogadora do país e estava entre as melhores juniores do mundo, mas não recebi um único cêntimo. É irónico, não achas? Acho que isto não teria acontecido no teu país, ou noutro país europeu… Mas não me travou e, sabes (bem, não tenho a certeza de que saibas), dizem que “da escuridão vem a luz”. E quando tudo estava a correr mal e a levar-me ao fim da minha carreira, tive a sorte de encontrar ajuda: pessoas que gostam de mim e que me deram o mínimo para comer, um lugar para dormir quer durante torneios, quer no dia a dia. Outros ajudaram-me com equipamentos. E outros com a minha situação física. A minha situação era desastrosa, mas consegui regressar ao caminho certo e fiz a transição para profissional.

No entanto, a vida pode ser dura e eu lesionei-me na pior altura, uma altura em que a ITF alterou as regras. Não tenho a certeza de que isto te tenha afetado, mas o que é que interessa? Os recursos financeiros são fundamentais para recuperar a forma física e naquela altura senti mesmo isso, mas uma vez mais isso não me travou. Apesar de todas as dificuldades consegui voltar ao ranking WTA.

Hoje, tenho 21 anos e estou perto do top 600.

Continuo a querer alcançar o sonho pelo qual sacrifiquei a minha infância, a minha educação, a minha adolescência, a minha família, os meus amigos, a minha estabilidade financeira, aniversários, férias. A minha vida toda!

E imagino, Dominic.

Como é que é ter um treinador que viaja contigo pelo circuito? Um personal trainer? Um fisioterapeuta? Um mental coach? Staff próprio?

Passo a maior parte do meu tempo sozinha. Sou uma mulher solitária, a viajar pelo mundo com voos de ligação, sempre à procura dos bilhetes mais baratos. Sacrifico o meu tempo, treinos e recuperação só para submeter o pedido de mais um visto e sabes que mais? Sem carpete vermelha, sem livre-passe, sem garantias. E esqueci-me de mencionar, mas preciso de um visto para praticamente todos os locais a que tenho de ir, e é mais um custo que tenho.

Estudo todas as possibilidades do calendário para otimizar os custos e tentar ganhar o máximo de pontos ao mesmo tempo. Fico longe dos torneios para reduzir os custos de alojamento.

Alternas entre a terra batida e o piso rápido semana após semana, como eu faço?

Terminas os torneios com buracos nos ténis, como eu?

Dominic, deixa-me perguntar-te qual é a sensação de poderes dar um presente aos teus pais? Qual é a sensação de os conseguires ver mais do que uma semana por ano? Celebrar o teu aniversário com eles? Não me lembro do último aniversário que celebrei com aqueles de que gosto… Sim, todos estes sacrifícios fazem parte do ténis, mas ainda assim…

O [meu desempenho no] court devia decidir o resultado da minha carreira, não as minhas finanças.

Isto é totalmente injusto. Estou a lidar com isto todos os dias, sem me queixar. A lutar constantemente, em silêncio.

Querido Dominic, ao contrário de ti, muitos vivem a minha realidade. Um pequeno lembrete: não foi com o teu dinheiro que sobrevivemos até agora e ninguém te pediu nada. A iniciativa partiu de jogadores generosos que demonstraram compaixão com um toque de classe. Jogadores dispostos a espalharem a solidariedade e a encontrarem soluções que façam a diferença. Campeões a todos os custos.

Dominic, esta crise inesperada faz-nos enfrentar tempos desafiantes e revela quem as pessoas realmente são. Ajudar os jogadores é ajudar o ténis a sobreviver. É um desporto nobre. O objetivo do desporto é distinguir os mais talentosos, os mais persistentes, os que trabalham melhor e os mais corajosos. Ou talvez queiras estar sozinho no court…

Dominic, como eu te disse não te pedimos nada. A não ser um pouco de respeito pelo nosso sacrifício. Jogadores como tu fazem-me agarrar aos meus sonhos. Por favor, não estragues isto.”

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