Ashleigh Barty estava “perdida”, “desligada” e “triste”. Tinha saudades de casa, das longas e profundas conversas com a família e da infância que lhe fugiu. O bilhete de identidade indicava a recém-chegada à maioridade, os jornais e revistas eternizavam as expetativas que sobre ela caíam, mais do que o caminho que trilhava. E então parou. Desligou. Escolheu a felicidade. A mesma felicidade que, oito anos depois, a colocou em posição de fazer história — agora com um sorriso.
Nas luzes da ribalta do ponto de vista internacional desde que venceu o torneio júnior de Wimbledon em 2011, aos 15 anos, Barty já era vista como uma promessa na Austrália há meia década, desde que atravessava o país com o apoio da família e deixava espantados todos aqueles que a viam bater na bola.
Mas foi nas primeiras viagens além-fronteiras que sentiu pela primeira vez os efeitos negativos do ténis. Sozinha, mais nova do que as restantes jogadoras e com saudades de casa, fazia longas chamadas para casa.
O sacríficio foi recompensado. As lágrimas que deixou em vários quartos de hotel pela Europa fora transformaram-se em vitórias, as milhas acumuladas deram-lhe espaço para transportar os troféus e permitiram-lhe cumprir o sonho de qualquer criança que começa a jogar ténis, chegar aos maiores palcos do circuito internacional.
Ainda com 16 anos, mais nova do que a maioria das protagonistas do circuito mundial de juniores, estreou-se em finais de pares de torneios do Grand Slam com Casey Dellacqua, 11 anos mais velha. Nesse ano de 2013 discutiu três títulos (vice-campeã do Australian Open, de Wimbledon e do US Open) e chegou ao 12.º lugar do ranking WTA de pares, um sucesso limitado pela regra do circuito feminino que restringe a participação de adolescentes no circuito com o objetivo de preservar a saúde mental.
O sucesso nos singulares não foi tão imediato, mas Barty ainda era menor de idade (17 anos) quando registou a primeira vitória da carreira em quadros principais de torneios do Grand Slam — 7-5, 2-6 e 6-1 a Lucie Hradecka na terra batida de Roland-Garros, aproveitando a reciprocidade de wild cards entre as federações francesa e australiana; e ainda era uma adolescente (18 anos) quando no ano seguinte ultrapassou pela primeira vez o qualifying de um “Major”, no US Open.
Foi o último torneio que disputou.
“Uma grande parte da minha filosofia de vida é que o ténis é um jogo e eu quero aproveitá-lo. Mas a certa altura deixei de me divertir tanto quanto queria e achei que o melhor a fazer era afastar-me para não correr o risco de me desinteressar para sempre”, explicou.
A decisão surpreendeu o mundo, mas não quem a seguia de perto. “Sempre achei que existiam possíveis sinais de alarme”, admitiu Jason Stoltenberg, o ex-tenista que começou a acompanhá-la poucas semanas antes da conquista no torneio júnior de Wimbledon, aos 15 anos, e que a viu sair de casa dos pais aos 16, para viver sozinha em Melbourne e apostar na carreira.
O apoio da família foi imediato e Barty seguiu os conselhos que lhe chegaram. O primeiro, da campeoníssima Evonne Goolagong Cawley, para se divertir. O segundo, do pai, para pedir ajuda a um profissional. “Tenho um transtorno obsessivo-compulsivo, sofro de depressão e sou bipolar. Estou medicado e vou estar durante toda a minha vida, mas vivo uma ótima vida”, revelou o progenitor ao The Sydney Morning Herald.
“Uma das coisas mais reconfortantes que podes fazer é falar sobre os teus sentimentos. Lembro-me que a maioria das sessões acabavam em lágrimas, mas quando saía de lá sentia-me muito melhor.” As palavras são de Barty, que recorreu à ajuda da tia, médica. Tomou medicamentos para a depressão durante quase dois anos. E redescobriu a sua paixão.
Ausente dos maiores palcos de competição, mas de volta ao court, reencontrou-se com o primeiro treinador, Jim Joyce, que quebrou a sua própria regra ao aceitar treiná-la logo aos 5 anos, uma idade em que aconselha a maioria das crianças a esperar mais dois anos. Novamente juntos, os dois organizaram várias clínicas de treinos para os mais novos e Barty começou a partilhar os seus conhecimentos e experiências com jovens compatriotas.
Até que um convite para uma palestra lhe abriu as portas do cricket. Nunca tinha experimentado o desporto, mas passava horas em frente à televisão e depois de falar sobre como preparar uma longa viagem ao estrangeiro foi convidada a assinar pelas Brisbane Heat. Daí até à estreia como profissional foi um piscar de olhos e ficou claro que o serviço-volley não era o único talento da australiana.
Barty participou em vários jogos oficiais ao longo da temporada, mas descobriu que ainda queria ter uma palavra a dizer no ténis e anunciou o regresso em 2016. O resto é história.
A metamorfose a passos largos recolocou-a nos lugares mais altos da variante de pares e, não muito depois, abriu-lhe as portas do sucesso em singulares como nunca.
Até 2019 nunca tinha ultrapassado a quarta ronda de um torneio do Grand Slam, mas depois de chegar aos quartos de final no Australian Open “explodiu” com a vitória em Roland-Garros. Subiu a número um do ranking mundial, conquistou o WTA Finals e voltou à Austrália, onde ameaçou pela primeira vez a conquista do título ao atingir as meias-finais. Mas depois surgiu a pandemia, que a fez optar pela permanência no país e abdicar da defesa do título em Paris, bem como da ida ao US Open.
Uma vez mais, Barty deu prioridade à felicidade. E uma vez mais foi recompensada.
Após 11 meses de ausência, conquistou um WTA 500 em Melbourne, defendeu o título no WTA 1000 de Miami, venceu o WTA 500 de Estugarda e chegou à final do WTA 1000 de Madrid, mas lesões atrapalharam-na em Roma e Paris. Não há problema, pensou, e na relva de Wimbledon só parou com o troféu de campeã nas mãos — onde fez a festa com um vestido desenhado em homenagem a Evonne Goolagong Cawley, a primeira mulher índigena a vencer o torneio, em 1971, e a mesma que este sábado lhe entregou o troféu de campeã em plena Rod Laver Arena.
A surpresa foi guardada a sete chaves e deixou Barty de lágrimas nos olhos.
Goolagong, que conquistou 11 títulos do Grand Slam e em 2007 viu a WTA reconhecer um erro nos rankings de 1976 e declará-la como a segunda número um mundial da história do circuito, teria sido desde início a escolha óbvia da organização para a cerimónia pelo simbolismo da ocasião e ligação à compatriota. Mas a doença que o marido enfrenta tornara impossível a sua presença no torneio até à final, tendo sido uma surpresa para todos a sua chamada ao palco para a entrega do troféu.
Mas este não foi o único momento emotivo da noite para Barty, que recebeu o troféu de campeã entre o hastear de várias bandeiras aborígenes — tal como Goolagong, também ela é descendente de uma destas tribos — e o olhar atento da família.
Minutos antes, logo após derrotar Danielle Collins (no único encontro da quinzena que lhe causou sérias dificuldades e no qual apesar do decréscimo do nível de jogo também venceu em dois sets, recuperando de uma desvantagem de 1-5 na segunda partida) e de braços no ar entre gritos de alegria, aplausos do público e uma rara manifestação efusiva de alegria, a australiana procurou um abraço especial.
E lá estava ele saído de uma das laterais do court, onde Casey Dellacqua lhe estendia os braços enquanto saltava uma das barreiras publicitárias.
“Durante o encontro tentei olhar para todo o lado menos para onde a Casey estava sentada, mas sabia que se precisasse ela estaria ali, porque ela mudou a minha vida”, admitiu a uma estação televisiva australiana. Não era um exagero: a ex-parceira de pares foi fundamental na decisão que Barty tomou ao afastar-se do ténis e fundamental para o seu regresso.
Num dia tão importante foram muitas as lágrimas, mas desta vez de alegria. Porque se em 2014 se sentia “perdida” por estar “desligada” e “distante” dos seus maiores pilares, agora Ashleigh Barty está feliz. E em casa, verdadeiramente em casa. Com a história à sua espera.