Djokovic oficialmente deportado — 11 dias e duas audiências depois, tudo o que levou à decisão final

Novak Djokovic viajou para Melbourne no dia 5 de janeiro, foi interrogado e detido pelas autoridades da fronteira, isolado num hotel de imigração após recorrer do cancelamento do visto e por lá ficou até à audiência pedida pela sua equipa legal. Depois de fazermos um ponto de situação dos primeiros dias atribulados do sérvio na Austrália, este domingo explicamos o que aconteceu na última semana, a começar pela audiência em que recuperou a liberdade e a terminar naquela que resultou na sua deportação definitiva.

  1. Juiz devolveu-lhe o visto (e a liberdade)
  2. Interações com teste positivo aumentam revolta
  3. Ministro exerce poder pessoal e ordena deportação, Djokovic responde com recurso
  4. Tribunal Federal valida ordem e consequente deportação

JUIZ DEVOLVEU-LHE O VISTO (E A LIBERDADE)

Depois de uma longa espera em que não faltou assunto para dissecar, Djokovic obteve a primeira vitória de 2022 em solo australiano: a 10 de janeiro, após quatro dias detido no controverso Park Hotel, o sérvio foi libertado.

A audiência foi longa e desde cedo se percebeu que não seria o último capítulo da história, mas nela o juiz Anthony Kelly anulou o cancelamento do visto por ter considerado que o sérvio não foi tratado de forma justa nos interrogatórios de que foi alvo no aeroporto, à chegada a Melbourne.

Mais concretamente, Djokovic não teve tempo nem condições para justificar às autoridades da fronteira as razões que o levaram a viajar para o país com uma isenção médica: tomou conhecimento da situação às 4h da manhã, inicialmente recebeu 20 minutos para se justificar e depois foi-lhe dito que o poderia fazer até às 8h30, já depois de ligar aos advogados, ao agente e de ter uma ponte para a Tennis Australia, mas às 6h14 os agentes insistiram que o fizesse e às 7h42 foi tomada uma decisão.

No tribunal não foi tomada qualquer decisão em relação à validade dos documentos, nem respeitante aos critérios definidos pelo governo, que voltou a reiterar que um teste positivo à covid-19 recente não é motivo suficiente para a obtenção de uma isenção médica da vacina contra a covid-19.

A decisão foi anunciada por volta das 17 horas e Djokovic não perdeu tempo: reuniu-se rapidamente com os elementos da sua equipa técnica, que por estarem vacinados tiveram desde o início autorização para entrar na Austrália, e apressou-se a pisar a Rod Laver Arena pela primeira vez desde que conquistou o nono título no Australian Open, um ano antes. As portas do recinto foram fechadas, as câmaras proibidas e pouco mais se viu ou soube do primeiro treino para além da fotografia que o próprio partilhou nas redes sociais, já depois das 22 horas.

No mesmo dia, a família do número um mundial organizou uma conferência de imprensa com jornalistas em Belgrado na qual o pai de Djokovic, Srdjan Djokovic, acusou a Austrália de ser uma “república das bananas”, apelidou o primeiro-ministro australiano de “ditador” e deixou um apelo à Rainha Isabel II: “Peço à […] líder da Commonwealth que intervenha e proteja os direitos humanos do meu filho e interrompa a perseguição política que acontece desde que ele viajou para a Austrália. Peço a todos os australianos e ao mundo que levantem a vossa voz contra a o terror e as violações brutais dos direitos do melhor tenista do mundo.”

INTERAÇÕES COM TESTE POSITIVO AUMENTAM REVOLTA

Mas o dia 10 de janeiro não se fez apenas de vitórias para Djokovic.

Se na véspera o governo australiano deixou claro que uma eventual vitória no apelo de não garantiria a sua entrada no país, uma vez que “a Austrália, como país soberano, mantém a discrição final sobre quem deixa entrar no país e o direito de retê-lo novamente com efeito imediato”, na segunda-feira o ministro da Imigração, Alex Hawke, reagiu à decisão do tribunal e confirmou que estava a considerar exercer “um poder pessoal” para avançar com a deportação.

Para além da provável sequela perante um juiz, a primeira audiência trouxe a público os documentos detalhados do processo e expôs as datas do teste positivo à covid-19 que os advogados de Djokovic tinham dado a conhecer quando avançaram com o recurso: o teste PCR foi realizado às 13h05 de dia 16 de dezembro e o resultado conhecido às 20h19.

Ou seja, Djokovic já tinha o resultado positivo à covid-19 quando participou numa cerimónia de prémios com crianças, a 17 de dezembro, e quando deu uma entrevista ao jornal L’Équipe, a 18 de dezembro.

Este assunto levou o irmão, Djordje Djokovic, a interromper a conferência de imprensa organizada pela família quando foi questionado sobre a presença de Novak Djokovic nesses eventos. “Esta conferência de imprensa está concluída”, disse.

Entretanto, o português João Sousa revelou alguma compreensão pelo facto de Djokovic defender aquilo em que acredita, mas classificou-a como “uma atitude um bocadinho egoísta” e explicou: “Não digo que seja o meu caso, mas muitos de nós também gostariam de não ser vacinados e fizeram-no para poder disputar os torneios. Acaba por ser uma regra que ele de certa forma conseguiu contornar e é o único jogador não vacinado a competir neste Grand Slam.”

Na terça-feira, o dia após a audiência que lhe devolveu a liberdade, o Der Spiegel afirmou que o teste positivo foi falsificado com a ajuda das autoridades sérvias.

Na manhã seguinte, a mãe do número um mundial abriu o dia com uma entrevista a um programa matinal. Desde Belgrado, Dijana Djokovic disse que o filho “provavelmente não sabia” que tinha testado positivo à covid-19 quando participou em eventos públicos na capital do país. “Ele não sabia [que estava positivo], porque quando soube isolou-se. Mas não tenho muito mais a dizer, o melhor é perguntarem-lhe a ele.”

Bastaram algumas horas para Djokovic, o filho, ir contra as declarações da mãe e até contra o que disse em tribunal: através de um comunicado nas redes sociais, quebrou o silêncio e admitiu que já tinha conhecimento do teste positivo à covid-19 quando foi entrevistado e fotografado presencialmente pelo jornal francês L’Équipe.

“Assisti a um jogo de basquetebol no dia 14 de dezembro, após o qual foi anunciado que uma série de pessoas tinha testado positivo à covid-19. Apesar de não ter sintomas, fiz um teste rápido de antigénio no dia 16 de dezembro que deu negativo e por uma abundância de precaução também fiz um teste PCR oficial e aprovado. No dia seguinte participei numa cerimónia de entrega de prémios a crianças, fiz um teste rápido de antigénio antes do evento e deu negativo. Estava assintomático e a sentir-me bem e não recebi o resultado positivo do teste PCR antes do final do evento”, começou por explicar.

A declaração contradisse o que Djokovic afirmara na audiência de segunda-feira com o tribunal de Melbourne, na qual disse ter conhecido o o resultado positivo à covid-19 no dia 16 de dezembro (a véspera da cerimónia com crianças).

“No dia seguinte, 18 de dezembro, fui ao meu centro de treino em Belgrado para cumprir um compromisso há muito tempo agendado com o jornal L’Équipe para uma entrevista e uma sessão fotográfica. Cancelei os restantes eventos, mas senti que devia dar a entrevista porque não queria desiludir o jornalista. Certifiquei-me de que mantive o distanciamento social e utilizei sempre uma máscara, excepto quando fui fotografado”, acrescentou, sem especificar se informou o jornalista de que estava infetado com covid-19. No entanto, o L’Équipe já reagiu e afirmou que não teve conhecimento do resultado positivo até esta semana.

E sobre o assunto Djokovic concluiu: “No regresso a casa para cumprir o período de isolamento, e em reflexão, reconheci que fiz um erro de julgamento e que devia ter reagendado este compromisso.”

O mesmo comunicado serviu para o jogador de Belgrado justificar um problema na declaração de viagem obrigatória antes de embarcar para Melbourne, na qual indicou que não tinha realizado qualquer viagem nos 14 dias anteriores à chegada a Melbourne, a 6 de janeiro, apesar de ter viajado de Belgrado para Marbella nos últimos dias de 2021. “Foi responsabilidade de um elemento da minha equipa, que o preencheu, [e tratou-se de] um erro humano e certamente não deliberado.”

MINISTRO ORDENA DEPORTAÇÃO, DJOKOVIC RESPONDE COM RECURSO

Seguiram-se dois dias relativamente serenos, até que na sexta-feira, 14 de janeiro, o ministro da Imigração tornou real o cenário avançado nos dias anteriores e anunciou o cancelamento do visto. O membro do governo considerou que o número um mundial podia representar um risco para a população.

O primeiro-ministro, Scott Morrison, foi rápido a reagir e afirmou que “os australianos fizeram muitos sacrifícios durante esta pandemia e esperam que os resultados desses sacrifícios sejam protegidos e foi isso que o ministro fez ao agir hoje”.

Ao final da noite, após a audiência de instruções com as duas equipas legais, o juiz Anthony Kelly ordenou a Djokovic que se apresentasse às autoridades federais australianas à porta do escritório dos seus advogados na manhã de sábado (noite de sexta-feira em Portugal Continental) para ficar sob detenção até à audiência de domingo.

E assim foi. “Nole” passou a noite detido, vários sérvios residentes em Melbourne organizaram protestos de demonstração de apoio e pelo meio conheceram-se os argumentos de defesa e acusação: entre outros, os advogados de Djokovic afirmaram que cancelar o seu visto “prejudicaria os interesses económicos da Austrália e comprometeria a viabilidade da Austrália continuar a sediar o Australian Open”; e o governo explicou que ordenou o cancelamento do visto e deportação do sérvio por considerar que a sua presença no país podia representar um risco para a população local.

Atendendo à urgência do assunto e à especificidade médica necessária para interpretar e confirmar a verificidade dos documentos apresentados pela equipa legal do sérvio, o ministro da Imigração partiu do princípio de que Djokovic teria razão — não lhe concedeu a razão, mas para “atalhar” assumiu esse cenário como o inicial — e deixou para trás a questão dos documentos apresentados.

Descartada uma das questões mais controversas, Hawke explicou que a sua decisão foi tomada por considerar que “a presença de Novak Djokovic na Austrália pode representar um risco para a saúde da comunidade australiana”, isto porque considerou Djokovic como “uma personalidade mediática que não está vacinada e que no passado já expressou publicamente opiniões anti-vacinação”.

Nesse sentido, Hawke afirmou que a permanência do sérvio no país “pode resultar num aumento do sentimento de anti-vacinação que encoraje pessoas a não serem vacinadas, a evitarem a dose de reforço e a aumentar a propagação do vírus e a pressão do sistema de saúde.”

Para além deste ponto de vista, o ministro da Imigração também disse que “o aparente desprezo pela necessidade de se isolar depois de receber um teste positivo à covid-19” pesou na decisão, uma referência clara à entrevista presencial que Djokovic deu ao L’Équipe em Belgrado já depois de ter recebido o teste positivo.

A poucas horas do começo da audiência decisiva, soube-se ainda que o resultado positivo do teste PCR realizado no dia 16 de dezembro foi “enviado nas últimas horas do próprio dia”, isto é, na véspera de Djokovic ter participado no evento com crianças.

“O documento com o resultado positivo foi enviado para o endereço do paciente nas últimas horas do próprio dia”, esclareceu Gojkovic aos jornalistas após uma reunião do gabinete de crise contra a covid-19. “Sobre o que ele fez depois [do envio], não posso comentar. É uma questão para ele e que diz respeito a outros responsáveis do governo“, esclareceu Zoran Gojkovic, secretário regional da saúde de Belgrado.

Apesar de não ter peso no que seria decidido este domingo, a informação colocou em causa o esclarecimento feito por Djokovic dias antes, quando afirmou que só teve conhecimento do teste após o evento de dia 17 de dezembro.

TRIBUNAL FEDERAL VALIDA ORDEM E CONSEQUENTE DEPORTAÇÃO

11 dias depois da chegada de Novak Djokovic à Austrália, o caso concluiu-se: o veredito foi conhecido às 17h54 locais, 6h54 de Lisboa, quando os juizes David O’Callaghan, James Allsop e Anthony Besanko decidiram “de forma unânime” que o ministro da Imigração australiano agiu no seu direito ao cancelar o visto do tenista sérvio.

O juiz O’Callaghan esclareceu que a decisão não foi um reflexo da validade da decisão original do governo de cancelar o visto a Djokovic, no dia 5 de janeiro, mas sim tendo em conta as bases legais da decisão tomada por Hawke na sexta-feira, 14 de janeiro.

Pouco depois, Djokovic reagiu ao anúncio: “Estou extremamente desapontado com a decisão do Tribunal de rejeitar o meu pedido de revisão judicial da decisão do Ministro de cancelar o meu visto, o que significa que não posso ficar na Austrália e participar no Open da Austrália.”

Apesar do desalento, o campeão em título do Australian Open aceitou o que foi decidido: “Respeito a decisão do Tribunal e cooperarei com as autoridades competentes em relação à minha saída do país.”

Uma das últimas fotografias de Novak Djokovic na Austrália em 2022

Às 22h39 locais, quatro horas e 45 minutos depois de ter conhecido a decisão, Novak Djokovic levantou voo a bordo do voo EK 409 da Emirates com destino ao Dubai acompanhado pelos elementos da sua equipa técnica.

Uma das primeiras reações ao anúncio da deportação surgiu pelo gabinete de Aleksandar Vucic, com o presidente da Sérvia a afirmar que o compatriota foi “torturado e maltratado” pelo governo australiano durante o processo. “Lançaram-se numa caça às bruxas contra uma pessoa e um país. Quiseram demonstrar com o Novak como funciona a ordem mundial e o que podem fazer contra qualquer pessoa. Aqueles que acreditam ter feito triunfar alguns princípios mostraram que lhes faltam princípios. Maltrataram um tenista durante dez dias apenas para lhe entregar uma decisão cujo conteúdo conheciam desde o primeiro dia.”

Srdjan Djokovic, pai do tenista, recorreu ao Instagram para um último protesto: “Terminou a tentativa de assassinato do melhor desportista do mundo, com 50 balas no peito do Novak. (…) Vemo-nos em Paris.”

Quanto ao futuro, só o tempo o dirá: a legislação australiana contempla uma proibição de entrada. no país durante três anos em casos de deportação, pelo que Novak Djokovic poderá não regressar à Austrália antes de 2025 (quando já terá 37 anos), mas as autoridades locais têm o poder de abrir uma exceção.

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