Quando na tarde de terça-feira anunciou que estava a caminho da Austrália com uma isenção médica da vacinação contra a covid-19, Novak Djokovic talvez estivesse preparado para uma onda de contestações. Mas o que o tenista sérvio de 34 anos não esperava era ser retido no aeroporto, ficar isolado da equipa técnica e alojado num hotel de refugiados, sem acesso a solo australiano até conhecer a decisão final do tribunal. Como é que aconteceu? Porquê? Até quando? Estas são as respostas.
- Historial anti-vacinação
- Um post lançou a polémica
- Deportação ordenada
- Trocas de responsabilidade
- Dois casos semelhantes, um desfecho rápido
- Alegado teste positivo colocado em causa
HISTORIAL ANTI-VACINAÇÃO
“Estou a caminho da Austrália com uma permissão de isenção.” Uma simples mensagem publicada por Djokovic no aeroporto antes de embarcar para Melbourne despoletou o caos. Mas para compreender toda a situação é preciso recuar a abril de 2020, no auge da primeira vaga da pandemia, quando o tenista sérvio deu a conhecer a sua posição durante uma conversa nas redes sociais com outros atletas do país: “Pessoalmente, sou contra a vacinação e não gostaria de ser forçado por alguém a tomar uma vacina para poder viajar.”
A contestação surgiu de forma imediata e por isso Djokovic foi chamado a explicar os seus comentários: “O meu problema com as vacinas é obrigarem-me a colocar no corpo algo que eu não quero. Para mim, isso é inaceitável, mas não sou anti-vacinas. Quem sou eu para me declarar anti-vacinas? Admito que há muitas com efeitos secundários reduzidos que ajudam a resolver muitos problemas.”
Um ano depois, quando o programa de vacinação já avançava por todo o planeta, Djokovic mostrou reservas em relação a pronunciar-se sobre o assunto: “Vou manter para mim a decisão sobre se vou ou não ser vacinado. É uma decisão íntima e não quero entrar neste jogo de pró e contra as vacinas. Não quero ser rotulado como alguém que é contra ou que é a favor das vacinas. Não vou responder à pergunta… E espero que todos respeitem isso”.
A tónica destes comentários, feitos em pleno ATP 250 de Belgrado organizado pela sua família e no qual vários jogadores aceitaram ser vacinados contra a covid-19, repetiu-se na reta final de 2021, quando o Australian Open começou a ser assunto e o governo local anunciou que a vacinação seria um requisito para entrar no país. “Tenho a minha opinião e sempre foi a mesma. Não vou revelar se fui vacinado ou não. É um assunto privado e, de acordo com a lei, podes processar quem te perguntar de alguma forma”, afirmou o sérvio em outubro. E repetiu-o sempre que daí para a frente foi questionado sobre o primeiro torneio do Grand Slam de 2022.
Assim, o suspense manteve-se — até ao anúncio de terça-feira.
UM POST LANÇOU A POLÉMICA
Depois de uma longa espera para se conhecer a sua decisão em relação ao Australian Open, a situação desenvolveu-se de forma célere a partir do anúncio nas redes sociais. Djokovic ainda estava a bordo do avião com destino a Melbourne quando o primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, ameaçou colocá-lo “no primeiro avião de volta a casa se não fornecer provas aceitáveis de que não pode ser vacinado por razões médicas para ter direito às mesmas permissões que pessoas que estão totalmente vacinadas.”
Porque a viagem até Melbourne ainda é longa, o escrutínio começou com Djokovic ainda longe de solo australiano. Dada a dimensão que o assunto ganhou rapidamente, a Tennis Australia apressou-se a explicar que a isenção médica “foi atribuída depois de uma avaliação realizada por dois grupos de médicos, um apontado pela Tennis Australia e o outro pelo governo de Victoria” e que “ninguém conhecia a identidade do candidato e ambos os painés foram unânimes na aprovação do pedido.”
Classificando o processo como “justo”, Craig Tiley, CEO da Tennis Australia e diretor do Australian Open, apelou ao sérvio que tornasse públicas as razões que lhe permitiram obter a isenção médica, mas reiterou que não podia ser ele a divulgá-las.
No entanto, o responsável máximo pelo ténis na Austrália explicou que uma das possíveis razões para obter uma isenção médica da vacinação e entrar no país seria uma recuperação recente da infeção. Doença cardíaca ou outra igualmente grave, possível risco tendo em conta o historial de saúde mental ou uma reação potencialmente fatal à primeira dose também foram apontadas como possibilidades, mas nenhuma “encaixava” no caso de Djokovic, pelo que uma infeção recente (e até então desconhecida) ganhou força como o cenário mais provável.
O caso ganhou contornos ainda mais dramáticos quando se soube que o sérvio aterrou em Melbourne com o visto errado (um que não permitia isenções médicas) e acabou retido pelas autoridades no aeroporto.
A acompanhar a situação do filho à distância, Srdjan Djokovic queixou-se à agência de notícias Sputnik: “Estão a mantê-lo em cativeiro há cinco horas. Isto é uma luta por um mundo liberal, não apenas pelo Novak. Se não o deixarem entrar vamos lutar para as ruas!”
Praticamente em uníssono, presidente sérvio Aleksandar Vucic mostrou-se solidário com a situação do compatriota e garantiu que “o país inteiro vai lutar pela justiça e pela verdade e vamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para acabar rapidamente com a perseguição que o melhor jogador do mundo está a sofrer.”
Por esta altura já o governo australiano tinha vindo a público esclarecer que as entradas no país eram controladas de acordo com o que a Commonwealth estabelecia, não o estado de Victoria.
DEPORTAÇÃO ORDENADA
Depois de oito horas de bloqueio no aeroporto e interrogatórios, as autoridades australianas consideraram que o sérvio não apresentou provas suficientes para justificar a isenção médica que apresentou e ordenaram a sua deportação.
Mas os advogados reagiram, deram rapidamente entrada a um recurso da decisão e Djokovic foi isolado num hotel de quarentena nos subúrbios de Melbourne, sem acesso ao exterior e à sua equipa técnica (toda vacinada e, por isso, livre de entrar no país) até conhecer a decisão do tribunal — marcada para segunda-feira. No mesmo hotel estão refugiados que solicitam asilo ao governo australiano. A unidade esteve recentemente sob investigação por causa de um escândalo sexual e na origem de vários casos de covid-19 na cidade.
O tratamento dado a Djokovic não agradou à família, que cumpriu a promessa e foi para a rua manifestar-se: Srdjan, o pai, pegou num megafone e comparou o filho a Jesus Cristo, descreveu-o como “o Spartacus do novo mundo” e falou no “maior escândalo desportivo diplomático da história”; Dijana, a mãe, repetiu os protestos de que a Austrália estava a manter o filho em cativeiro, acusações a que a Ministra dos Assuntos Internos reagiu afirmando que o sérvio “não está a ser mantido em cativeiro na Austrália e é livre de sair quando quiser para regressar a casa.”
TROCAS DE RESPONSABILIDADE
Com Djokovic à espera, as autoridades oficiais envolveram-se numa troca de responsabilidades. O Herald Sun anunciou que a Tennis Australia enviou informações incorretas aos jogadores a 7 de dezembro, dando-lhes conta de que seria possível participarem nos torneios não estando vacinados caso tivessem recuperado da covid-19 nos últimos seis meses e pedissem uma isenção médica.
A Tennis Australia defendeu-se afirmando que seguiu as indicações do Australian Technical Advisory Group on Immunisation (ATAGI) e do Governo de Victoria, mas a justificação não cobriu todos os buracos: não só a entidade teve por base os critérios de isenção que o ATAGI estabeleceu para cidadãos australianos — e não estrangeiros — como a isenção que Djokovic apresentou, num papel oficial da Tennis Australia e assinada por um médico ligado à organização (uma revelação feita por fontes do governo à ABC), apenas dizia respeito ao torneio e não à entrada no país.
Essa lacuna terá sido identificada pelo governo australiano e apontada à Tennis Australia em várias ocasiões, nomeadamente em novembro. Greg Hunt, Ministro da Saúde, informou Craig Tiley de que os tenistas que tentassem entrar no país não receberiam uma isenção médica da vacinação só por terem recuperado recentemente do vírus.
E a Ministra dos Assuntos Internos, Karen Andrews, reiterou que “uma isenção emitida pelo Governo de Victoria para jogar ténis em Victoria é completamente diferente de qualquer isenção ou requisito para entrar na Austrália.”
Segundo a mesma responsável, “esta isenção só se aplicava à sua participação no Australian Open e não tinha qualquer estatuto legal na fronteira federal, onde as autoridades da Commonwealth aplicaram as suas próprias medidas para verificar o seu pedido de visto com uma isenção”.
Jacinta Allan, membro do Governo de Victoria, reconheceu que “apesar de ter dado autorização ao Novak Djokovic para competir no torneio, a sua entrada no país era um assunto para o governo federal.“
DOIS CASOS SEMELHANTES, UM DESFECHO RÁPIDO
Também na sexta-feira conheceram-se outros dois casos semelhantes ao de Novak Djokovic, mas com desfechos diferentes.
Renata Voracova, tenista checa que não enfrentou problemas na chegada à cidade com uma isenção médica de vacinação e até competiu num dos WTA 250 de Melbourne, foi informada de que as autoridades da fronteira tinham cancelado o seu visto e levada para o mesmo hotel do sérvio.
Mais tarde, o Ministério dos Negócios Estrangeiros da República Checa comunicou que a especialista de pares tomou a decisão de abandonar o país, medida que a própria justificou por “não querer perder tempo nesta guerra política.”
Voracova, no entanto, fez questão de explicar que “estava a planear ser vacinada depois da época [de 2021] terminar, mas infelizmente apanhei covid-19 mesmo nessa altura. Depois não havia marcações para a vacina e tive de voar para a Austrália na semana seguinte. Não sou contra a vacinação como Djokovic, os nossos casos são muito diferentes.”
O terceiro e último pedido de isenção médica aceite (entre os 26 que chegaram aos responsáveis) diz respeito a um elemento do staff, não identificado, que no mesmo dia também fez saber que iria abandonar o país de forma voluntária.
ALEGADO TESTE POSITIVO COLOCADO EM CAUSA
Em contagem decrescente para o dia de todas as decisões, sábado começou com uma comunicação da equipa legal de Novak Djokovic: os seus advogados anunciaram que o tenista sérvio testou positivo à covid-19 a 16 de dezembro e que foi essa a razão que lhe permitiu obter uma isenção médica de vacinação contra a covid-19 para entrar no país.
A comunicação deu rapidamente origem a uma retrospetiva aos movimentos de Djokovic: na véspera do dia em que realizou o teste (os advogados não especificaram se tomou conhecimento do resultado a 16 de dezembro, apenas que foi esse o dia em que o fez) foi captado a assistir por vezes com, por vezes sem máscara a um jogo da liga europeia de basquetebol com “casa cheia”; já no próprio dia do teste participou numa cerimónia em Belgrado (sem máscaras ou outros cuidados) na qual foi homenageado com a divulgação de um selo e no dia seguinte organizou uma cerimónia de entrega de prémios a crianças no Novak Tennis Center, também sem máscaras ou distanciamento social.
Mas o acontecimento que tornou a veracidade do teste positivo contestável foi revelado 12 horas depois do anúncio feito pela equipa de advogados: se a presença no evento de lançamento do selo e até na entrega de prémios a crianças aconteceram num período de tempo em que era possível ainda não conhecer o resultado do teste, “o que dizer do dia 18 de dezembro, quando deu ao L’Équipe uma longa entrevista a propósito do troféu ‘Campeão dos Campeões 2021’? Esteve com máscara durante a entrevista, mas não a usou na sessão fotográfica.”
A revelação foi feita pela redação do prestigiado jornal desportivo francês, que na sua edição online expôs os factos que ameaçam tornar falível um argumento de defesa que mesmo antes de ter a sua veracidade colocada em causa já era considerado como “insuficiente” pelas autoridades responsáveis.
Tudo se decide a partir das 10h de segunda-feira em Melbourne (23h de domingo em Portugal Continental e 20h no Brasil), numa audiência que será possível acompanhar através de uma aplicação de videoconferências.