Esplendor na Relva | “Como estás, Novak Djokovic?”, por Miguel Seabra (em Wimbledon)

A esquerda ao poder — e outros pormenores da vitória de Novak Djokovic em Wimbledon, que lhe valeu o 13º título do Grand Slam e o regresso à ribalta do ténis mundial. A análise exclusiva de Miguel Seabra, em reportagem no All England Club.

Miguel Seabra, em Wimbledon

Depois da tradicional conferência de imprensa do campeão em inglês, a grande maioria dos jornalistas aprestou-se a sair da sala antes que se iniciasse a conversa com os representantes sérvios. Alguns de nós, que estávamos nas primeiras filas, passámos à frente do palanque onde estava sentado o campeão. O meu insigne colega Ubaldo Scanagatta, sempre ufano, saudou Novak Djokovic e foi apertar-lhe a mão, tendo a resposta num italiano perfeito. Vendo-me logo atrás, Novak Djokovic esticou a mão na minha direção disse-me, em português: “Como estás?”.

Já não me lembro o que respondi, porque fiquei surpreendido. Mas não devia. Tal como ninguém deveria ter ficado surpreendido pelo modo como o jogador de Belgrado ultrapassou dois anos difíceis e uma complicada lesão no braço para regressar aos grandes títulos e, simultaneamente, cimentar a sua posição na estratosfera dos melhores tenistas de todos os tempos — destacando-se agora no quarto lugar com 13 títulos do Grand Slam, atrás dos 20 de Roger Federer, dos 17 de Rafael Nadal e dos 14 do mesmo Pete Sampras que, na sua meninice, viu levantar o troféu de Wimbledon e o inspirou a dedicar-se ao ténis. Aos 31 anos, o sérvio ainda tem uma boas temporadas pela frente e terá muitas oportunidades de forrar o seu já de si excelente palmarés. A próxima das quais no US Open, partindo na linha da frente dos favoritos. Afinal de contas, e apesar de ser um todo-o-terreno, os hardcourts são a sua superfície de eleição.

E não deveria ter ficado surpreendido com a reação de Novak Djokovic no final da conferência de imprensa porque ele é mesmo assim, ao contrário do que muita gente (sobretudo os Federistas e os Nadalianos mais radicais) pensa: educado, respeitoso e atencioso, sempre tentando falar na língua do interlocutor. E, afinal de contas, já temos um relacionamento que vem de trás — primeiro de 2005, quando começou por dar nas vistas precisamente em Wimbledon e acompanhei um colega sérvio que se sentava ao meu lado na sala de imprensa numa entrevista à então jovem promessa (chegou à terceira ronda), e depois de modo mais próximo em 2007, quando veio a Portugal jogar o antigo Estoril Open e saiu com o título. Nessa semana, tive a oportunidade de o conhecer bem e em situações longe do olhar público, que é quando se vê realmente a natureza de uma pessoa. Pediu-me para o levar a ver na Luz o derby Benfica-Sporting, no camarote presidencial quis conhecer e agradecer a toda a gente os bilhetes de última hora (quando a lotação já estava esgotada), esforçou-se sempre em tentar falar português e foi informar-se melhor na internet quem era o lendário Eusébio antes de o conhecer pessoalmente. No court e perante a famosa ventania do Jamor, as coisas nem sempre correram bem e muitas vezes demonstrou o seu fogoso temperamento balcânico — mas foi de uma correção exemplar para todos na organização e no fim do torneio concedeu-me uma entrevista especial, durante um jantar improvisado antes de partir para o aeroporto.

Afinação de uma arma nuclear

Durante essa entrevista, falámos de tudo um pouco e revelou-me na altura que tinha uma estocada secreta que reservava para os momentos mais cruciais dos encontros: “a esquerda ao longo da linha, porque faz sempre mudar tudo numa troca de bolas”. Essa conversa com o jovem jogador, que na altura tinha somente 19 anos e vinha de um sensacional triunfo no Masters 1000 de Miami, ficou-me marcada na memória pelas mais diversas razões e na conferência de imprensa que se seguiu ao seu quarto título em Wimbledon voltei a puxar pela tal revelação da arma letal que ele reservava para os momentos mais cruciais e que nos últimos tempos parecia andar desafinada:

“Há muito tempo, quando jantámos após o teu triunfo no Estoril Open, disseste-me que tinhas uma arma secreta que reservavas para momentos-chave — a esquerda ao longo da linha. Nos últimos anos pareceu que perdeste a afinação dessa tua pancada fundamental, ao mesmo tempo que a tua direita melhorava significativamente e se tornava num grande trunfo. Aqui em Wimbledon parece que finalmente recuperaste a precisão da esquerda paralela. Concordas ou estarei eu errado?”, perguntei (na transcrição oficial da conferência a questão nem está bem replicada). Na minha ótica, juntamente com a fome de competição que demonstrou (e sempre digo que a motivação é o principal combustível para qualquer campeão), o recuperar da eficácia dessa desequilibrante esquerda paralela, jogada com um melhor timing e maior assertividade, foi determinante para o seu êxito no All England Club; a resposta dele foi elaborada.

“Sim, eu apoiava-me muito nessa pancada, especialmente na primeira fase da minha carreira”, sorriu. “A esquerda ao longo da linha era, e ainda é, provavelmente uma das mais importantes pancadas não só no meu jogo mas no ténis em geral. Olhando para a estrutura de um ponto, independentemente do tipo de superfície, estatisticamente o que é mais frequente ver-se é a esquerda cruzada e depois alguém desvia-se da esquerda para bater a direita, em combinações 1-2. A maior parte dos jogadores sentem-se mais acantonados do lado da sua pancada de esquerda, pelo que a esquerda ao longo da linha, se nos sentimos confortáveis com essa pancada e tivermos confiança nela, pode abalar muito o ritmo e o posicionamento no court do adversário. Essa pancada de esquerda tem sido uma arma minha, se é que lhe podemos chamar assim. É um golpe difícil, já que a bola tem de passar sobre a parte mais alta da rede. Tem de ser executado com um bom timing. Tens razão, durante algum tempo não me senti confortável a bater a esquerda paralela, mas acho que ultimamente tem funcionado bem”.

Com a sala completamente cheia e a imprensa britânica sedenta de perguntas, cada jornalista só teve direito a uma questão. E eu gostaria de ter dado sequência ao tema puxando à baila Marian Vajda, que entretanto retomou o papel de seu treinador e que considero ter sido determinante na recuperação das bases do jogo de Novak Djokovic — incluindo a famosa esquerda paralela.

O peso de Marian

Sempre achei que Marian Vajda, o bonacheirão eslovaco que na segunda ronda do Estoril Open de 1991 frustrou os portugueses ao dar a volta a um encontro que parecia perdido diante de Nuno Marques, era o treinador ideal para Novak Djokovic — por conhecê-lo melhor do que ninguém, desde a sua adolescência. Nunca achei muita piada à contratação de Boris Becker, cujos comentários na BBC me mostravam não ter mais-valia no plano técnico ou táctico; entretanto os comentários melhoraram significativamente nestes últimos dois anos, mas concedo que naquele preciso momento da carreira do sérvio o campeão alemão possa ter sido uma grande ajuda no plano da afirmação psicológica ao mais alto nível, mesmo que Novak Djokovic já tivesse atingido os píncaros sem ele na temporada de 2011 e numa fase inicial de 2012. Andre Agassi pareceu-me uma melhor escolha no ano passado, mas rapidamente foi despachado, juntamente com Radek Stepanek. E Marian Vajda voltou, como voltou o melhor ténis de Novak Djokovic. E regressou também a sua famosa esquerda, batida mais à frente e com maior fiabilidade.

A noção da importância de Marian Vajda na vida e carreira de Novak Djokovic também me vem dessa edição do Estoril Open de 2007: acompanhei vários treinos deles e nunca, mas nunca, tinha visto uma tal cumplicidade entre jogador e treinador, com tanta galhofa no court mas também trabalho duro e exigente.

Na conferência de imprensa houve colegas que trouxeram o nome do treinador eslovaco à baila, embora não da maneira que eu abordaria numa segunda questão que não pude efetuar. Mas as respostas foram esclarecedoras. “Falámos depois da final e parece que o Marian está a pensar continuar a trabalhar comigo, o que é excelente. Vamos continuar a trabalhar até ao final do ano e depois logo se vê. Claro que lhe estou muito grato por ter aceitado voltar. Depois de um ano sem trabalhar comigo, continuando eles com as respetivas vidas e a fazer outras coisas, deixarem tudo para voltar a trabalhar comigo e ajudarem-me a chegar até aqui foi muito bom da parte deles”, disse. Então alguém perguntou: “Sentiste-te muito mal quando lhe telefonaste para ele regressar (ou seja, após ter sido ‘dispensado’)? Novak Djokovic foi peremptório: “Nada disso. Pelo contrário. Não me senti nada mal. Até estava com muita vontade de o fazer. Não demorou muito — nessa mesma noite ele telefonou-me de volta e perguntou-me quando iríamos começar a treinar. Dias depois ele estava comigo. Como disse antes, quando nós nos ‘separamos’ mantivemos o contacto. Somos família. Alimentamos o nosso relacionamento. Gostamos um do outro. Isso não mudou quando profissionalmente decidimos separar-nos. Foi mais um intervalo, uma curta pausa, do que uma longa pausa, e estou contente que assim tenha sido”.

Foi bom ver Novak Djokovic a jogar novamente com garra, competitivo, a fazer as escolhas certas no momentos mais adequados — uma assertividade que lhe faltou no confronto dos quartos-de-final de Roland Garros com um Marco Cecchinato em estado de graça. E a mostrar o seu orgulho ferido de campeão quando, nalgumas ocasiões durante o torneio, achou não estar a ser respeitado pelo público… como sucedeu na sequência de um erro de arbitragem no duelo com Kyle Edmund que ele teve toda a razão em protestar ou durante o encontro decisivo, quando quase todo o Centre Court apoiava desalmadamente Kevin Anderson na tentativa de sacudir o sentimento de inevitabilidade da vitória do sérvio e ajudar o sul-africano a tornar a final mais digna. Novak Djokovic gosta que gostem dele e faz por isso, embora também saiba que é visto por muitos como o usurpador que chegou para abalar a hegemonia dos tão amados Roger Federer e Rafael Nadal. Isso deixa-o algo desconsolado, embora tenha aprendido a lidar com a situação. Entretanto, também a sua legião de fãs foi crescendo.

Falámos muito dessa temática quando ele me voltou a conceder uma grande entrevista com sessão fotográfica no Hotel Bvlgari de Londres, antes do Masters (ATP Finals) de 2015, numa altura em que dominava por absoluto o circuito profissional. Uma conversa franca, na qual ele abriu um pouco mais a alma talvez pela confiança de me conhecer há muitos anos. Pela minha parte, e como grande admirador das qualidades humanas de todos os principais protagonistas da atualidade (Roger Federer, Rafael Nadal, Novak Djokovic e o próprio Andy Murray, apesar da sua negatividade no court que engana muita gente, por oposição a algumas prima-donnas dos anos 80 e 90 que eram mesmo execráveis), só me posso regozijar com o regresso do sérvio a um patamar que é verdadeiramente o seu. O duelo com o arqui-rival Rafael Nadal nas meias-finais foi de uma intensidade incrível, com picos de dramatismo tremendos, e qualquer um poderia ter saído vencedor. O que se quer mesmo é mais duelos desses, entre supercampeões.

E, ao escrever isto, recordei-me finalmente da resposta que dei ao “Como estás?” de Novak Djokovic na conferência de imprensa. “Melhor do que tu não estou”, disse-lhe em português. Com mais um título do Grand Slam após dois anos de jejum e dúvidas, celebrado com o seu filho Stefan a aplaudi-lo no camarote, ninguém podia mesmo estar melhor do que o sérvio naquele momento.

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