O filão inesgotável do ténis feminino da República Checa produziu mais uma campeã de Wimbledon. Não tão surpreendente como a do ano passado, mas com uma carga sentimental suplementar que trouxe à baila uma calamidade e uma redenção na década de 90 — e uma mítica estrofe de Rudyard Kipling sobre dois impostores.
Miguel Seabra, em Wimbledon
A entrada para o Centre Court é encimada por uma famosa inscrição retirada do poema If, de Rudyard Kipling: “If you can meet with Triumph and Disaster, and treat those two impostors just the same”. Para se perceber melhor o alcance da frase, vale a pena ler o poema por inteiro — e quem é pai ou mãe deve partilhá-lo com os filhos. Porque representa o paradigma do equilíbrio perante as armadilhas da vida, a euforia e a depressão, o sucesso e o fracasso, a fama e a infâmia. As duas mais conhecidas traduções em português do poema ‘Se’ apresentam as seguintes versões:
“Se, encontrando a desgraça e o triunfo, conseguires tratar da mesma forma a esses dois impostores”
“Se podes encarar com indiferença igual o triunfo e a derrota, eternos impostores”
Eu seguiria um caminho distinto; optaria por “Se conseguires encarar o triunfo e o desaire, e lidares com esses dois impostores da mesma maneira”. De qualquer das formas, é impossível não recordar essa estrofe sempre que regresso a Wimbledon — não só pela inscrição por cima da porta que dá para o relvado do Centre Court visível na televisão e através da porta exterior ou pelo destaque no Museu do All England Club, mas também porque há sempre um ou outro encontro que remete para o lendário poema escrito em 1895. Desta vez foi a final feminina.
Foi uma final em três capítulos e as duas protagonistas nem sempre atuaram ao seu melhor nível em simultâneo. Na aparente aleatoriedade dos torneios femininos do Grand Slam, tão distintos dos masculinos devida à diferença entre três e cinco sets, a surpreendente e sorridente Jasmine Paolini tornou-se na primeira jogadora a competir em duas finais consecutivas de singulares numa mesma época desde Ons Jabeur em 2022. Mas perdeu ambas, como sucedeu com a tunisina em Wimbledon e no US Open de há dois anos… e, nos mesmos torneios, com Jim Courier em Roland Garros e Wimbledon de 1993. Quanto a Barbora Krejcikova, que já tinha ganho a primeira em Roland Garros há três anos, venceu agora a segunda em Wimbledon e garantiu automaticamente um lugar no International Tennis Hall of Fame. E foi a ligação da checa à sua malograda mentora Jana Novotna que trouxe à baila a tal história dos dois impostores.
Em 1993, Jana Novotna exibiu-se em estado de graça e jogando magistralmente à rede para contrariar o claro favoritismo da supercampeã Steffi Graf. Mas, com um break de vantagem no terceiro set e com oportunidades de conseguir um segundo com ponto para 4-1, claudicou por completo. Não foi Steffi Graf que elevou consideravelmente o seu nível de jogo; foi mesmo Jana Novotna que, à frente de todos, se deixou esmagar pela solenidade da ocasião, alternando duplas faltas e madeiradas. Foi a choke de todas as chokes. E depois, realizando bem o que acontecera, desabou a chorar no ombro da consoladora Duquesa de Kent quando recebeu o troféu de finalista. O momento comoveu tudo e todos, incluindo a implacável imprensa sensacionalista britânica — que declarou logo ali que aquele foi o único momento nobre num annus horribilis (e a expressão foi da própria Isabel II) para a realeza britânica, com o divórcio de Carlos e Diana a culminar uma série de outros escândalos.
Felizmente, Jana Novotna conseguiu a redenção no mesmo local da sua tremenda débacle. Em 1998, chegou ao título na sequência de uma final com a ‘acessível’ francesa Nathalie Tauziat. E recebeu o troféu da Duquesa de Kent, num momento que emocionou todos aqueles que já se tinham emocionado na final de cinco anos antes. É certo que Jana Novotna chorou face ao desaire e celebrou perante a vitória, reagindo de modo diferente perante esses dois ‘impostores’. Mas nunca deixou de ser a mesma, tanto na ressaca da derrota como na euforia da vitória. Por isso era tão querida entre as colegas de profissão e popular entre os fãs. E por isso foi a melhor mentora que Barbora Krejcikova poderia ter encontrado.
Barbora Krejcikova projeta sempre um sentimento académico quando joga; procura sempre bater a bola com a técnica ideal, por vezes mesmo dando a impressão de um qualquer principiante que mimetiza na perfeição o gesto que o professor acabou de lhe demonstrar. É uma jogadora competente e completa. Que nos pares apresenta um pedigree ainda superior. Nos singulares, ultrapassou curricularmente a sua mentora Jana Novotna e igualou os dois títulos do Grand Slam alcançados por Petra Kvitova, tendo agora à vista os quatro de Hana Mandlikova. Barbora Krejcikova é uma checa com cobertura, para fazer um trocadilho com um meio de pagamento que, entretanto, entrou em desuso.
E essa cobertura tem a ver com gerações de campeões e campeãs da Chéquia (e da antiga Checoslováquia) nas últimas seis décadas, cimentada por tantos treinadores de elite, as melhores parceiras de treino e incontáveis sucessos — individuais, de pares ou em equipa na Fed Cup/Billie-Jean King Cup. Tal como Marketa Vondrousova em 2023, Barbora Krejcikova parecia não só estar nos ombros da sua mentora mas também estar de todas as outras campeãs compatriotas que a precederam. Aquela expressão anglo-saxónica do “standing on the shoulders of Giants” que Andre Agassi usou no seu discurso de despedida pode bem aplicar-se à checa, habituada a crescer e a conviver com o sucesso das suas colegas e amigas, na senda do filão do ténis checo. Houve Jaroslav Drobny e Jan Kodes, Ivan Lendl e Petr Korda, mas sobretudo Martina Navratilova (que estava presente na Royal Box) e Hana Mandlikova, a inevitável Jana Novotna, a recém mamã Petra Kvitova, Karolina Pliskova (número um sem ter ganho um Slam), Marketa Vondrousova e todas as outras figuras gradas do ténis feminino checo. E por pouco que Karolina Muchova não se juntava ao rol há um ano, tendo passado perto do triunfo em Roland Garros, como Karolina Pliskova já tinha perdido a final de Wimbledon em 2021.
No ténis (sobretudo feminino), a República Checa é como Portugal no futebol — tanta gente nasce a respirar a modalidade que já faz parte da cultura nacional. E se a leitura do último parágrafo vos fez lembrar alguma coisa, eu esclareço: foi copiado e adaptado do meu texto de há um ano referente ao triunfo de Marketa Vondrousova. Mas concluo de outra maneira: com a minha tradução integral do poema ‘Se’, de Rudyard Kipling. Porque representa de maneira ideal aquilo que Jana Novotna terá transmitido a Barbora Krejcikova, que para ela foi uma espécie de filha. E também porque, traduzido e publicado, me dará a oportunidade de fazer copy+paste para uma outra ocasião tenística, muito provavelmente numa das próximas edições de Wimbledon…
If (Se),
por Rudyard Kipling
* tradução de Miguel Seabra
Se conseguires manter a calma quando à tua volta
todos a perdem e te culpam por isso;
Se conseguires manter a fé em ti próprio quando todos duvidam de ti,
mas também fores capaz de aceitar as suas dúvidas;
Se conseguires esperar sem desesperares com a espera,
ou, sendo caluniado, não devolveres as calúnias;
ou, sendo odiado, não cederes ao ódio,
E, mesmo assim, não pareceres paternalista nem presunçoso:
Se conseguires sonhar — e não ficares dependente dos teus sonhos;
Se conseguires pensar — e não transformares os teus pensamentos em certezas;
Se conseguires encarar o Triunfo e o Desaire
e tratar esses dois impostores da mesma maneira;
Se conseguires suportar ouvir a verdade do que disseste,
transformada, por gente desonesta, em armadilha para enganar os tolos,
ou ver destruídas as coisas por que lutaste toda a vida,
e, mantendo-te fiel a ti próprio, reconstruí-las com ferramentas já gastas:
Se fores capaz de arriscar tudo o que conseguiste
numa única jogada de cara ou coroa,
e, perdendo, recomeçar tudo do princípio,
sem lamentar o que perdeste;
Se conseguires obrigar o teu coração e os teus nervos
a ter força para aguentar mesmo quando já estão exaustos,
e continuares, quando em ti nada mais resta
do que a Vontade que lhes diz: «Resistam!»
Se conseguires falar a multidões sem te corromperes,
ou conviveres com reis sem perder a naturalidade;
Se conseguires nunca te sentir ofendido
seja por inimigos, seja por amigos queridos;
Se todos podem contar contigo, mas sem que os substituas;
Se conseguires preencher cada implacável minuto
com sessenta segundos que valham a pena ser vividos,
É tua a Terra e tudo o que nela existe,
E — mais importante ainda — então, meu filho, serás um Homem.