Wimbledon e o campeão ‘maneta’

Não há torneio melhor para se ganhar no ténis do que Wimbledon — pelo prestígio, pela história, pela tradição, por todo o simbolismo que representa conquistar o título na Catedral do Ténis. Não há imagem de qualquer cerimónia de entrega de prémios mais partilhada do que a fotografia dos campeões de Wimbledon com o respetivo troféu no Centre Court. Mas já repararam bem no que está escrito no troféu individual masculino? Descobri o que era muito longe do All England Club — numa pequena cidade eslovaca, para ser mais preciso. E, a fazer jus ao célebre troféu e tendo em conta o elenco das meias-finais, Lorenzo Musetti deveria ser o vencedor antecipado…

A história que tenho para contar remonta a 1996. Estava em Trnava para cobrir uma eliminatória da Taça Davis entre a Eslováquia e Portugal quando descobri que Neale Fraser, um hall of famer do ténis, também andava por lá. A sua presença na pequena cidade eslovaca foi completamente inesperada, mas explicou-me que estava a regressar de Inglaterra para a sua Austrália e fez uma paragem na Eslováquia porque a ITF lhe pediu para avaliar a eliminatória. Aproveitei a ocasião e entrevistei-o; afinal de contas, ‘Frase’ foi um jogador de topo com três títulos do Grand Slam (um de Wimbledon, dois US Opens) no seu currículo, um reputado técnico e o lendário capitão da seleção australiana da Taça Davis que costumava sentar-se num sofá — à rei! — no court sempre que a Austrália jogava em casa. A sua capitania foi extensa: durou 23 anos. E perguntei-lhe qual tinha sido o seu momento mais difícil no cargo.

Neale Fraser não pestanejou: foi no confronto que permitiu à Austrália derrotar a Suécia em Kooyong, em Dezembro de 1986, uma final que acompanhei avidamente na televisão. Esse encontro decisivo nem foi o quinto encontro, no qual um Stefan Edberg em boa forma assumia grande favoritismo diante de Paul McNamee; foi o primeiro dos dois encontros de singulares no domingo, quando a Austrália, a vencer por 2 a 1, apresentou Pat Cash diante do então vice-campeão de Roland-Garros, Mikael Pernfors. Mats Wilander não jogou essa final por causa de seu casamento e, como dizia um cartaz nas bancadas, «while Mats weds, Aussies Cash in». No primeiro dia, Cash enfrentou Edberg numa cintilante exibição de serviço-vólei que o australiano venceu por 13-11, 13-11, 6-4; seguidamente, Pernfors venceu facilmente McNamee e, como o sempre importante confronto de duplas também foi a favor dos australianos, Cash poderia conquistar a taça nesse embate com Pernfors…

Ninguém esperava que Pernfors vencesse porque Cash estava a jogar um ténis fenomenal de agressividade controlada; Pat era uma besta altamente competitiva, um predador que me convenceu naquele duelo com Edberg de que mais cedo ou mais tarde seria campeão de Wimbledon. Mas Pernfors surpreendeu tudo e todos, respondendo de maneira brilhante e afinando o passing-shot para adjudicar os dois primeiros sets perante a consternação geral em Kooyong; Cash, que nunca foi um tipo fácil, parecia um animal enjaulado e dava para sentir que estava prestes a explodir — e Neale Fraser simplesmente não sabia o que fazer ou dizer naquele momento, porque uma única palavra mal colocada poderia desencadear uma grande explosão. E esse foi o pior momento que Fraser me disse ter tido na sua carreira, algo com que me identifico: contei-lhe que o meu momento mais delicado como repórter de ténis também envolveu Cash, quando ele tentava recuperar de lesões em 1994 e decidiu disputar um evento satélite em Portugal. Entrevistei-o durante um par de horas e a conversa foi excelente; ele ficou surpreso com algumas das minhas perguntas e disse-me várias vezes «ya did your homework, didn’t ya?».

Na verdade, não precisei de grande preparação: já sabia muito sobre ele porque na altura ele era um dos jogadores que eu mais admirava na minha juventude e até a minha então namorada (e depois mulher) me ofereceu a sua camisa Sergio Tacchini de 1988 como presente de aniversário. Cashy ficou surpreendido por um jovem repórter de Portugal saber tanto sobre a sua carreira e a conversa correu bastante bem — mas, enquanto a entrevista decorria, de vez em quando achei que ele me insultava em gíria australianas só por diversão e para fazer rir um amigo que tinha vindo com ele. Eu não conseguia perceber o que era, mas sentia que me estava a insultar entre os dentes enquanto sorria ao mesmo tempo e quase reagi mal à situação — pensei em mandá-lo ‘lamber sabão’ (e provavelmente levar um soco) ou virar-lhe as costas e vir embora. Não o fiz e a entrevista saiu excelente.

E foi quando estava a trocar impressões sobre Pat Cash com Neale Fraser que a conversa levou à sua memorável vitória em Wimbledon em 1987 (aquela em que ele derrotou Ivan Lendl em três sets sem perder um único ponto no serviço na segunda partida e depois subiu ao players’ box para comemorar) que me perguntou: «Sabes o que está escrito no troféu individual masculino de Wimbledon?» Não, não sabia. E ele revela-me: «Na verdade, diz ‘Campeonato Mundial de Uma Mão do All England Lawn Tennis Club’! (The All-England Single-Handed Championship of the World)». Ou seja, um single-handed champion (quase se poderia traduzir single-handed por… maneta)! Que detalhe delicioso: na época em que o troféu foi feito, em 1887, não havia esquerdas a duas mãos, muito menos direitas bizarras a duas mãos. O ténis era jogado ‘a uma mão’ tanto por homens como mulheres — o que é irónico, considerando que hoje em dia as esquerdas a duas mãos constituem uma esmagadora maioria e que no primeiro trimestre da presente temporada deixou de haver, pela primeira vez na história do ranking computorizado do ATP Tour, um jogador com esquerda a uma mão no top 10. Felizmente, Grigor Dimitrov e depois Stefanos Tsitsipas lá reintegraram o lote dos dez primeiros… mas voltaram a sair.

Outra ironia sublime é que um dos anacronismos de Wimbledon tem a ver com o facto de se tratar de um evento de Grand Slam cujos recordistas (ainda) são jogadores com esquerdas a uma mão! Ok, nas ultimas décadas houve Bjorn Borg (1976-80), Jimmy Connors (1974, 1982), Andre Agassi (1992), Goran Ivanisevic (2001) e Lleyton Hewitt (2002), Rafael Nadal (2008, 2010), Andy Murray (2013, 2016) e sobretudo Novak Djokovic (2011, 2014, 2015, 2018, 2019, 2021, 2022) a ganharem com esquerdas a duas mão — para além de finais entre jogadores de esquerdas a duas mãos como Borg-Connors, Agassi-Ivanisevic, Hewitt-Nalbandian, Nadal-Berdych, Djokovic-Nadal, Murray-Djokovic, Djokovic-Berrettimi, Alcaraz-Djokovic. E a maioria dos campeões e finalistas que acabei de mencionar eram jogadores de fundo do court, com exceção de Ivanisevic, dotado de um serviço-canhão e que não poderia ser descrito como intérprete clássico do serviço-vólei.

Deve então fazer-se a inevitável pergunta: terá a proliferação da esquerda a duas mãos sido um golpe fatal para a extinção do serviço-vólei? Quantos jogadores de serviço-vólei usaram (ou usam, entre os raríssimos sobreviventes dessa espécie em extinção) usam a esquerda a duas mãos? Não há muitos. Dois dos maiores especialistas do serviço-vólei e da história de Wimbledon — Stefan Edberg e Pete Sampras, que inspiraram Roger Federer — jogavam com esquerdas a duas mãos até por volta dos 15/16 anos, até que os seus respetivos treinadores os convenceram a abandonar a segunda mão para torná-los melhores voleadores. A decisão, que deixou Edberg e Sampras numa crise de confiança por algum tempo, claramente valeu a pena mais tarde: quem bate esquerdas a uma mão tem mais facilidade em usar o slice e tem mais sensibilidade no vólei de esquerda. E aqui fica uma dica: vale sempre a pena obrigar a volear de esquerda alguém que bata a esquerda a duas mãos no fundo do court.

E o que dizer daqueles que, ao contrário de Edberg e Sampras, continuaram a servir e volear enquanto mantinham a esquerda a duas mãos? O americano David Wheaton foi um deles, mas ganhou dois milhões na infame Grand Slam Cup em 1990 e toda aquela riqueza instantânea satisfez a sua fome de vencer; nunca passou dos quartos de final de Wimbledon. Jan-Michael Gambill foi outro apóstolo do serviço-vólei com uma esquerda a duas mãos… com uma direita também a duas mãos! Ainda chegou aos quartos-de-final de Wimbledon (2000). Andy Roddick tinha um serviço-canhão que lhe permitiria (mais ou menos) sacar e volear na relva e durante alguns anos só Roger Federer foi melhor do que ele na Catedral do Ténis, mas alguns maus vóleis de esquerda custaram-lhe pontos importantes nas três finais que jogou com o suíço…

Quão ‘perfeitas’ foram as edições de Wimbledon com Roger Federer a ganhar o título masculino com a sua esquerda a uma mão e Venus Williams a vencer o ‘Venus Rosewater Dish’, nome da salva destinada à campeã feminina? Já agora, as últimas finais femininas de Wimbledon entre duas jogadoras com esquerda a uma mão foram Jana Novotna x Nathalie Tauziat em 1998 e Amélie Mauresmo xJustine Hénin em 2006. Este ano, o único eventual ‘single-handed champion’ a partir dos oitavos-de-final era Lorenzo Musetti, que tem hoje pela frente aquele que é considerado o jogador com a melhor esquerda a duas mãos de todos os tempos.

Para concluir: depois da tal entrevista, fiquei a conhecer melhor o Pat Cash e até lhe disse que me tinha apetecido virar-lhe as costas naquela altura. Ao longo dos anos ofereceu-me várias bandanas axadrezadas que eram a sua imagem de marca e eu também lhe ofereci alguns acessórios ‘axadrezados’ (desde chapéus a porta-chaves). Ainda não lhe ofereci foi uma camisola do Boavista…

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