Nunca foi tão fácil circular no Stade Roland-Garros e a maior liberdade possibilitou uma passagem por vários courts onde ia sendo feita história, mas foi sobretudo nos principais, com mais ou menos protagonismo das milionárias coberturas, que se escreveu o guião do primeiro dia de Roland-Garros. Ou melhor, do primeiro dia de quadros principais — porque o torneio, como já escrevi, começou há uma semana.
Por Gaspar Ribeiro Lança, em Paris
Roland-Garros era, até ao início deste ano, o único dos quatro torneios do Grand Slam a começar a um domingo. A divisão da primeira ronda por três dias (ao invés dos dois habituais) reduz o número de encontros por jornada, mas as limitações do complexo e a cada vez maior afluência do público impediam os mais irrequietos — como eu — de explorarem a seu belprazer todos os cantos do complexo sem engarrafamentos constantes e entediantes. Até este ano.
A explicação mais provável aponta para uma redução no número de ground passes (bilhetes de recinto) colocados à venda pela organização, embora os dados de afluência ainda não sejam conhecidos e, por isso, seja impossível confirmá-lo.
Certo é que, pela primeira vez nos meus quatro anos em Roland-Garros, este domingo consegui circular livremente de um lado ao outro do recinto, mesmo com os courts mais importantes a apresentarem bancadas tão compostas quanto é habitual. Houve até momentos em que me foi mais fácil fazê-lo do que há uma semana, quando cá estive para acompanhar os dois primeiros dias do qualifying.
Adiante (porque este texto não é sobre a afluência do público), apesar dos primeiros dias serem propícios a contos de fadas nos campos mais pequenos, foi nos maiores que encontrei a génese para o primeiro relato da semana. Aos protagonistas chamemos, num primeiro momento, velhos conhecidos.
O público francês até começou o dia a derramar lágrimas por Ugo Humbert, que tanto prometeu nos primeiros meses da época e chegado à catedral da terra batida teve estadia curta em Roland-Garros. Tal como há um ano, o número um do país perdeu contra Lorenzo Sonego e sofreu a quinta derrota na primeira ronda em seis edições. Mas mais tarde foi nesse mesmo palco, o Court Suzanne-Lenglen, que se viveu a apoteose da jornada inaugural.
Algumas horas depois de inaugurar com toda a classe a cobertura amovível do segundo maior palco do complexo, que já tinha sido útil para os encontros da fase de qualificação, a organização fez uso dos radares meteorológicos topo de gama que os torneios do Grand Slam têm à sua disposição e ativou-a ainda durante o encontro de Jelena Ostapenko com Jaqueline Cristian. Bendita a hora, pois permitiu evitar uma longa interrupção quando a chuva apareceu com proporções semi-catastróficas.
Foi por isso com o teto fechado que Richard Gasquet escreveu a primeira história de heróis da 123.ª edição. Aos 37 anos e a jogar pela 21.ª vez o quadro principal de Roland-Garros, igualando o recorde de Feliciano López na Era Open, o último dos segundos mosqueteiros contrariou o corpo e resistiu a um encontro à melhor de cinco sets. E com muita classe, ao aproveitar o wild card para vencer o croata Borna Coric (10 anos mais novo) por 7-6(5), 7-6(2) e 6-4.
Um daqueles espetáculos imperdíveis para quem está no recinto e tem acesso às bancadas.
Os cerca de 10.000 franceses que preencheram por completo as bancadas durante quase todo o encontro desafiaram os limites das respetivas gargantas e transformaram o embate geracional num ambiente de Taça Davis, entoando em uníssimo o nome de Gasquet à medida que o mago ia construindo aquela que, porventura, terá sido a última vitória da carreira no maior torneio francês.
Tal como Nadal, Gasquet também não quis confirmar que esta será a última participação em Roland-Garros. Mas as entrelinhas do discurso deixaram bem evidente a possibilidade, até porque a lesão crónica nas costas que o perturba há mais de uma década raramente lhe dá descanso e os resultados já não lhe permitem ser presença habitual entre a elite.
A experiência tornou-se bela e nostálgica ao mesmo tempo. Enquanto os franceses cantavam La Marseillaise (o hino nacional) talvez pela terceira vez lá estava ele, sentado, a contemplar o ambiente amplificado pela cobertura, que acrescenta aos ambientes frenéticos o que retira à estética da icónica arquitetura do Court Suzanne-Lenglen.
Os portugueses não perdem uma oportunidade para criticarem os franceses e raramente os elogiam, mas eu — suspeito, eu sei, afinal nasci em Paris — não hesito em fazê-lo: ninguém os supera no amor que sentem pelo ténis (nos torneios Challenger têm sempre casa cheia, mesmo com ingressos próximos da centena de euros) e no apoio que dão aos seus jogadores.
Fazer parte de um encontro que ganhe proporções épicas torna-se experiência obrigatória numa vinda a Roland-Garros. E nem o facto dos últimos anos serem escassos em resultados de relevo por parte dos tenistas da casa inibe o público de cozinhar atmosferas arrepiantes.
Esta receita ajudou Gasquet a fazer recuar o tempo e a perdurar pela eternidade mais uma dúzia de esquerdas a uma mão que vão deixar saudades no ténis, o desporto que não lhe deu tudo o que o futuro lhe reservava (“o campeão que a França anseia” foi capa da famosa Tennis Magazine com apenas nove anos…).
Segue-se, salvo enorme catástrofe, Jannik Sinner, um dos melhores jogadores da atualidade e, portanto, o altamente provável derradeiro adversário de Richard Gasquet nesta história que, assim, teria um final digno, para quem durante décadas carregou — por vezes com companhia, por vezes sozinho — o peso de uma nação desejosa de heróis.
O brilharete do gaulês dificilmente seria ultrapassado em epicismo por algo do que viesse a acontecer no resto da jornada, mesmo se o prato forte do dia acontecia… de noite, com Andy Murray e Stan Wawrinka frente-a-frente na primeira sessão noturna do torneio.
Muito cobiçada pelas televisões (a Amazon Prime detém os direitos exclusivos em França para este horário) e alvo de muita polémica desde que foi implementada, tal tem sido a discrepância entre encontros masculinos e femininos, a deste domingo era incontestável e garantia quer casa cheia, quer ecrãs ligados pelo país e o mundo fora.
O britânico (37 anos, finalista em 2016) e o suíço (39 anos, campeão em 2015) são ainda mais velhos do que o francês e movem multidões por todo o mundo, ou não fossem eles os maiores opositores dos vangloriados Big Three, mas estão longe dos tempos áureos e este dificilmente seria um encontro épico. Não foi, os parciais de 6-4, 6-4 e 6-2 a confirmarem o maior à vontade do segundo na terra batida e a mandarem para casa todos os que anseavam por algo épico a acontecer sob os holofotes.
Valeu pelo longo e emocionante abraço no final, a propósito do até sempre de Murray a Paris.
Mas ali mesmo ao lado estava outro trintão bem conhecido do público a singrar noutro thriller.
Kei Nishikori não participava num torneio do Grand Slam desde o US Open de 2021 e salvo uma fugaz aparição no ATP Masters 1000 de Miami, há dois meses, já não atuava no circuito desde julho, pelo que foi com enorme surpresa que viajou para Paris e decidiu ir a jogo em Roland-Garros.
As lesões (na anca esquerda e num pé) têm dificultado a vida à primeira super-estrela do ténis japonês, responsável pelas primeiras digressões em massa de repórteres daquele país aos maiores torneios do globo, todos com a esperança de escrever e captar o que anos mais tarde Naomi Osaka finalmente conseguiu fazer.
Mas o legado que o pequeno samurai construiu continua bem presente e esgotou o Court 6, onde o dia deu lugar à noite e já depois das 22h30 locais se gritou victoire ao cabo de 4h22. Ao som dos aplausos que ecoavam desde o Court Philippe-Chatrier, mais adequado às melhores memórias que guarda, Nishikori evitou um colapso e, bem à sua imagem, venceu um encontro de singulares num torneio do Grand Slam (tem agora um registo de 28-7 em encontros à melhor de cinco sets, 10-2 só em Roland-Garros).
7-5, 7-6(3), 3-6, 1-6 e 7-5 foram os números da vitória contra Gabriel Diallo, o canadiano que chegou a sonhar com a recuperação, mas que no final nada pôde fazer para evitar o regresso feliz do nipónico, nos dias de hoje já com 34 anos e à procura de uma reta final isenta de contratempos.
A multidão que se aglomera na lateral do court à procura de um autógrafo e de uma selfie com o astro japonês espelha a popularidade que perdura no tempo, a equipa técnica que o acompanha reflete os frutos de uma carreira que apesar dos dissabores recentes ainda é superada em alegrias.
Este dia foi dos trintões. Não faltarão muitos, resta aproveitá-los.
Gonçalo, prazer em conhecê-lo.
Espero com interesse o seu comentário ao dia de ontem, despedida, oxalá não definitiva, de Nadal.
Foram 3 horas emotivas.
António Barros
Boa tarde, António. Obrigado pelo seu comentário. O texto que escrevi sobre a despedida do Nadal já está disponível aqui: https://www.raquetc.com/2024/05/27/rafael-nadal-desce-a-terra-dos-mortais-e-diz-um-muito-provavel-adeus-a-roland-garros/
Muito obrigado por acompanhar e interagir, é um prazer.