Num reino sem rei onde a inevitabilidade do tempo nos traz de volta à realidade

O rei ausentou-se. Depois de 18 anos consecutivos a desfilar em Paris, que tomou como sua segunda casa e onde celebrou por históricas 14 vezes, Rafael Nadal falha o torneio de Roland-Garros pela primeira vez desde que nele se estreou — era então um miúdo com o cabelo comprido, os braços musculados enfatizados pela t-shirt de manga cava e os calções para lá do joelho. Não foi ele que o decidiu, foi o corpo, essa luta inglória contra o tempo à qual nem os maiores heróis escapam e que pinta de dúvidas os contornos do adeus definitivo. E assim a cidade luz tornou-se num reino sem rei, mas não faltam pretendentes ao trono.

Por Gaspar Ribeiro Lança, em Roland-Garros

“Repara, repara! Deixaram espaço para mais um título!”

Ouço a frase pela quinta vez em poucos minutos. Desta vez vinda da boca de um rapaz com sotaque britânico, instantes antes de um grupo de adolescentes espanhóis. Por lá param franceses, italianos, norte-americanos. Pequenos e graúdos. Novatos e entendidos na arte do ténis. Provavelmente pensam no mesmo. Reparam no mesmo.

A estátua de Rafael Nadal erguida por Jordi Diez Fernandez e inaugurada em 2021 é o primeiro cartão de visita para todos aqueles que entram no Stade Roland-Garros pela Porta 2 no topo Norte do Court Philippe-Chatrier e tornou-se por estes dias num ainda maior motivo de interesse, com um pequeno detalhe a merecer vários comentários dos muitos curiosos que por lá passam para, à sua maneira, matarem saudades.

Na impossibilidade de dividir os 14 títulos de campeão em grupos redondos, a organização dispõem-nos em três grupos de cinco, sobrando espaço à direita para uma eventual 15.ª inscrição depois dos anos 2005, 2006, 2007, 2008, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014, 2017, 2018, 2019, 2020 e 2022.

Entrar num recinto com uma estátua de Rafael Nadal numa era em que o espanhol ainda compete é uma experiência inusitada. Tal como o é vê-lo a competir num court com o seu nome — a Pista Rafael Nadal em Barcelona. Mas os acontecimentos dos últimos 18 anos foram de tal forma absurdos que estas são apenas mais duas alíneas num mar de acontecimentos que teimam em desafiar os limites da realidade.

Não houve na história do ténis outro jogador com um impacto tão grande num único torneio, afirmação irrefutável que foge à subjetividade das conversas das últimas décadas sobre os maiores nomes da história do desporto. São os números que o esclarecem: 112 vitórias, três derrotas e uma desistência, 14 finais disputadas e todas elas ganhas.

“Quando jogas Roland-Garros em 14 ocasiões consideras que tiveste uma boa carreira. Quando ganhas 14 encontros no torneio isso já não é nada mau. Quando chegas à segunda semana em 14 vezes és um dos grandes jogadores. E quando ganhas o título por 14 vezes não há forma de o compreender. Não há palavras.” Quem o disse foi Nicolas Mahut numa entrevista ao L’Équipe que reforça a incredulidade que mesmo aqueles que com ele se cruzaram dia após dia, ano após ano sentiram ao vê-lo escrever tamanha epopeia.

O percurso iniciado em 2005 (não jogou em 2004 porque se lesionou na segunda ronda do antigo Estoril Open no Jamor) fez de Rafael Nadal sinónimo de Roland-Garros, elevando-o tanto quanto possível ao estatuto de “deus” numa modalidade que o viu crescer numa época em que Roger Federer já dava claros sinais de estar bem encaminhado para bater um recorde que poucos anos antes a maioria julgava jamais vir a ser batido: o de mais títulos ‘Major’ então detido pelo norte-americano Pete Sampras, 14.

O domínio do maiorquino no pó de tijolo (parisiense e não só) nunca será passível de ser explicado com justiça ao que realmente significou. E se para os apaixonados se transformou num entusiasmante enigma, para aqueles que com ele se cruzaram significou pura e simplesmente desespero.

Assim o deixou evidente Nicolás Almagro, o adversário nos quartos de final da edição de 2008 (o ano em que conquistaria o seu quarto título consecutivo) que, a meio desse duelo, cedeu à frustração: “Vai ganhar Roland-Garros 40 anos seguidos. Vai ter 65 anos e vai continuar a ganhar Roland-Garros”, desabafou para o seu camarote quando a derrota já era dada como certa.

Tratando-se naturalmente de uma hipérbole, a afirmação do tenista de Múrcia — a mesma cidade de onde entretanto surgiu Carlos Alcaraz — deixou bem clara a forma como gregos e troianos passaram a encarar Rafael Nadal na terra batida, mais do que uma superfície o seu “quintal”.

Nunca um reinado no ténis foi tão esclarecedor, tão prolongado e tão esperado. Porque ano após ano a questão principal deixou de incidir em quem levantaria o troféu de campeão, mas sim em qual seria o homem ousado e capaz de o ferir a caminho de uma quase inevitável revalidação do título que sem precedentes se assumiu como seu, sempre seu.

Foram poucos os que o conseguiram. Muito poucos.

O primeiro foi Robin Soderling, o sueco que travou Nadal na quarta ronda da edição de 2009 e “abriu às portas” ao Grand Slam de carreira de Federer, que só nesse ano triunfou em Paris — a cidade onde perdeu as finais de 2006, 2007, 2008 e 2011 para, adivinhe-se, Rafael Nadal.

O segundo foi, claro, Novak Djokovic. O jogador que mais vezes encontrou soluções para travar o ’touro’ espanhol fê-lo pela primeira vez na capital francesa durante os quartos de final de 2015 — de forma categórica, com uma vitória em três sets — e ao derrotar Andy Murray nas meias-finais pensou-se que estivesse prestes a repetir o raro e de repente quase banal (porque os Big 3 tornaram-se especialistas em banalizar a superação de metas impossíveis) Grand Slam de carreira. Mas Stan Wawrinka travou-o e a festa do sérvio só chegou em 2016, o único ano em que Nadal saiu de Paris sem derrotas, mas também sem o título ao desistir antes da terceira ronda por causa de uma lesão no pulso. Em 2021, nova vitória para Djokovic contra Nadal e desta vez acompanhada pelo título, feito que fez dele o primeiro e único jogador a sagrar-se campeão de Roland-Garros depois de derrotar o espanhol.

De tão raras, as três derrotas de Rafael Nadal em Roland-Garros ganharam um simbolismo e uma importância sem igual: afinal, não há mesmo reinados perfeitos e até as histórias mais douradas têm os seus momentos baixos.

Tal como um fim.

E se o de Rafael Nadal em Roland-Garros ainda não chegou (acredite, caro leitor, não vale a pena cair na tentação de o dar já como acabado), certo é que a sua ausência em 2023 deixa o reino de Paris sem rei.

É a inevitabilidade do tempo a trazer de volta a realidade e a relembrar os mortais de que no ténis todos começam na linha de partida. Sete rondas, sete vitórias, um título no horizonte.

Ainda hercúlea, mas agora mais real, a missão que 128 jogadores enfrentam ao longo dos próximos 15 dias vale um lugar na história do ténis. Para todos, sem exceção, porque até para o único entre os principais candidatos para o qual não seria inédito triunfar em Paris esta semana pode ser inesquecível: se vencer Roland-Garros pela terceira vez, Novak Djokovic passará a deter, pela primeira vez, o recorde de títulos (seriam 23) em torneios do Grand Slam que há vários anos é a sua maior motivação.

Com a certeza de que daqui a 15 dias um jogador que não Rafael Nadal vai ser coroado campeão de Roland-Garros, o mesmo tempo que agora nos devolve à realidade também se encarregará de demonstrar que nenhum jogador se sobrepõe a um torneio. Nem mesmo um campeão-recordista.

E não há melhor ocasião do que esta para o reforçar: Roland-Garros está vivo e bem vivo, a caminho de mais uma transformação revolucionária (o teto do Court Suzanne-Lenglen está a ser instalado e numa questão de meses passarão a ser dois os courts com cobertura amovível quando há cinco anos este era o Grand Slam menos desenvolvido) e com o público a demonstrar uma fome de ténis sem precedentes.

Em 2022 foram 613.586 os espetadores que passaram pelos portões do Stade Roland-Garros durante a quinzena de quadros principais e tudo indica que o número será superado em 2023, uma edição que começou com uma resposta avassaladora no qualifying (50.000 espetadores, tantos quanto possível atendendo ao limite diário de 10.000).

O tempo, sempre o tempo, tudo se encarregará de resolver.

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