Farewell, Sir Andy Murray — o herói entre os super-heróis

O mesmo Centre Court que nas últimas duas décadas o viu fazer história vestiu-se a rigor para uma despedida emocionante, tão simples e tão clássica que só desta forma podia ser. Wimbledon, a catedral do ténis, não quis arriscar e despediu-se de Sir Andy Murray depois do encontro de pares masculinos — uma jogada que dois dias depois se revelou muito acertada.

Por Gaspar Ribeiro Lança, em Wimbledon

Andy Murray não teve a despedida com que sonhou. No último ato de uma longa peça sobre milagres, o britânico que há mais de cinco anos joga com uma anca de metal sonhava competir em singulares pela última vez, mas a poucos dias do torneio começar sofreu dores sem precedentes na perna direita e foi operado para remover um quisto na coluna vertebral. Não sendo a desejada, a decisão sentada acabou por tornar-se mágica.

Nunca uma primeira ronda de pares foi tão aguardada. Os irmãos Andy e Jamie uniram esforços pela primeira vez na história do torneio e o All England Club parou. Numa jornada muito preenchida, todos queriam acompanhar de perto um encontro recheado de simbolismo. Os courts exteriores ficaram, subitamente, mais vazios à medida que os espetadores se apercebiam das conjugações de resultados e começavam a dirigir-se para a famosa colina (The Hill) onde habitualmente se agregam para assistirem aos encontros mais mediáticos dos tenistas da casa.

Em Wimbledon, a credencial de imprensa dos rookies (é apenas o meu terceiro ano a cobrir o torneio) não garante acesso aos dois maiores courts, sendo necessária a requisição de uma pulseira extra para o efeito. Por isso, precisava de manter-me muito atento para chegar ao piso 0 do gabinete de imprensa no momento certo e assegurar a entrada no Centre Court a tempo de assistir à primeira ovação. A minha pontualidade britânica deu frutos e recebi a segunda pulseira, uma sensação bem mais agradável do que a que vários colegas sentiram ao chegarem quando a fila já era composta por duas dezenas de jornalistas. Nem todos terão conseguido entrada, porque a maioria dos lugares de imprensa é reservada aos jornalistas da velha guarda ou dos maiores órgãos de comunicação social.

É necessário atravessar um estreito corredor para transitar entre o media centre e o Centre Court (em Paris, a sala de imprensa está localizada no piso -1 do Court Philippe-Chatrier e o acesso é feito através de elevadores exclusivos, benefícios de uma quase total reconstrução do estádio nos últimos anos), um percurso de habitualmente dois minutos que nesta ocasião se revelou bem mais exigente, tal era a asáfama vinda de todas as direções.

Sentia-se a emoção no ar. Uma emoção que a frase dita por Emma Raducanu no início da semana ajuda a compreender. “Wimbledon é Andy Murray e Andy Murray é Wimbledon”, disse a jovem super-estrela de 21 anos, apenas mais um do que os que o compatriota tem de Wimbledon.

A afirmação pode parecer redutora para os 147 anos de história do torneio de ténis mais antigo e mais prestigiado do mundo, mas ajuda a explicar as últimas 20 edições, todas elas marcadas, de uma maneira ou de outra, pelo homem que transformou sonhos em realidades e devolveu a dignidade ao ténis britânico. Ironicamente, foi dita pela responsável por uma despedida longe dos holofotes — mas já lá vamos.

Este britânico que começou por ser reduzido a escocês (demorou muitos anos a conquistar os corações de todos os compatriotas) é o herói entre os super-heróis, o maior lembrete de que também os Big Four são feitos de carne e osso — até metal — e que, por isso, até eles são confrontados com choques de realidade.

Curiosamente, foi em Nova Iorque que conquistou os primeiros títulos do Grand Slam quer como júnior (2004), quer como profissional (2012), mas é a Wimbledon que pertencem as memórias mais douradas da carreira de Murray.

A vitória épica de 2008 sobre Richard Gasquet — 5-7, 3-6, 7-6(3), 6-2 e 6-4 — quando a escuridão já se apoderava do Centre Court, consumada com o arregaçar da manga direita para exibir o bícepe, fez surgir a Murray Mania. O discurso em lágrimas após a final perdida para Roger Federer em 2012, quando se tornou no primeiro homem britânico desde 1938 a discutir o título, conquistou definitivamente os corações dos britânicos. A vingança servida um mês depois, no mesmo palco e contra o mesmo adversário, para conquistar a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Londres eternizou-o na história. E a final ganha em 2013, para colocar o fim a uma espera de 77 anos, tornou-o imortal.

Murray tornou-se numa figura de culto. Foi um verdadeiro herói ao vencer oito encontros de singulares (tantos quanto possível) e três pares (nos quartos de final, nas meias-finais e na final) para dar à Grã-Bretanha o primeiro título na Taça Davis desde 1936 dessa conquista em 2015 partiu para um ano de 2016 dourado. Tão dourado que acabaria por significar o início do fim.

Depois de ser finalista no Australian Open (pela quinta e última vez) e em Roland-Garros (onde atingiu o “Grand Slam de finais”), repetiu não só a glória em Wimbledon como o sucesso olímpico, mas não satisfeito continuou. Depois de uma passagem desapontante por Nova Iorque conquistou os títulos em Pequim, em Xangai, em Viena e em Paris, onde ascendeu pela primeira vez à liderança do ranking. Na última semana do ano voltou a casa e em Londres garantiu o fecho de época como número um, tornando-se ao mesmo tempo no primeiro homem a conquistar um ATP Masters 1000, o ATP Finals, um torneio do Grand Slam e a medalha de ouro olímpica num só ano.

O currículo de Andy Murray não se explica em três parágrafos porque é feito de mais de 1.000 páginas — há um mês, no Queen’s Club, venceu no 1.000.º encontro de singulares da carreira ao mais alto nível (para a estatística não contam os que jogou em torneios ITF ou Challenger, nem mesmo no qualifying de torneios ATP) antes de desistir por causa da lesão que o deixa com a perna direita totalmente adormecida.

São duas décadas de história e duas décadas de emoções para os britânicos, que na hora da despedida de um ídolo também se despediram de quem eram quando o viam jogar.

Wimbledon, com a sua classe, atreveu-se a resumir tudo isto e fez o impossível num vídeo de quatro minutos.

Durante aqueles quatro minutos, o Centre Court que por várias vezes nas duas horas anteriores o aplaudiu de pé silenciou-se para uma viagem ao passado narrada por Roger Federer, Novak Djokovic, Rafael Nadal e Venus Williams. Nada ficou de fora. Nem as derrotas, nem a luta pela igualdade e reconhecimento, nem o sofrimento. Perfeição em forma de um vídeo, com o único apontamento questionável a assentar na escolha de Creep, dos Radiohead, para o arranjo musical — ou esta é a música favorita de Murray, ou a produção gostou da metáfora, ou foi atrás do demasiado óbvio “I wish I was special You’re so fuckin’ special”.

Talvez nunca tenhamos a resposta, mas esta terá sido, certamente, a primeira vez em que a palavra “fucking” foi reproduzida no sistema de som do Centre Court, a catedral do ténis.

O farewell preparado por Wimbledon foi perfeito. Este é o torneio onde não há lugar a egos ou ostentações, onde não se fazem introduções aos jogadores ou homenagens recheadas de figuras à procura do melhor sorriso para a fotografia. Entrou a lendária Sue Barker, que o deixou de queixo caído e foi recebida com uma ovação de pé, seguida de algumas lendas do ténis de outrora e atual, e com um tripé e um microfone se honrou um herói. Simples, elegante, arrepiante.

Foi impossível não sentir um nó na garganta durante os 20 minutos que se seguiram.

Foi impossível não sentir arrepios ao entrar numa viagem ao passado.

Foi impossível não sentir, no fundo.

Mas também foi impossível não rir, porque entre as lágrimas de tristeza lá estava ele, o humor genuíno que tão bem o caracteriza, bem diferente da personalidade fechada e até carrancuda como tantos o descreveram ao longo destes anos. Murray falou de vómitos por mais de uma vez (ao recordar como começou o relacionamento com a mulher, Kim Sears, e ao revelar o que passou na noite da celebração do segundo título em Wimbledon) e deu o seu toque divertido a um dia triste, mas sobretudo de celebração.

Foi a homenagem perfeita para um final imperfeito, afinal também ele é humano.

E acabou mesmo por ser o fim da história de Murray em Wimbledon. Escrevia eu, no início do texto, que Wimbledon não quis arriscar e decidiu homenageá-lo à primeira oportunidade, uma decisão que 48 horas depois se revelou certeira: este sábado, Emma Raducanu desistiu do tão aguardado e simbólico encontro de pares mistos para preservar o pulso que tantos problemas lhe deu nos últimos anos.

O fim de Andy Murray em Wimbledon foi mesmo aqui, neste Centre Court de onde agora me saem as últimas palavras desta história de super-heróis. Mas tudo indica que ainda haverá pelo menos mais um capítulo a escrever, nos Jogos Olímpicos de Paris. Adequado, ou não fosse ele o único tenista da história com duas medalhas de ouro em singulares.

Total
0
Shares
Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Total
0
Share