À Noite, no Museu (chamado Roland-Garros)

Pode um cenário catastrófico dar lugar a um cenário belo? Pode a escuridão outrora temida resultar num serão aclamado? Pode o épico tornar-se ainda mais épico? Em Roland-Garros, depois da tempestade veio a bonança e a noite de quinta-feira tornou-se numa das mais especiais de que há memória em torneios do Grand Slam.

Por Gaspar Ribeiro Lança, em Paris

Chegou a temer-se o pior, mas viveu-se o melhor. A jornada de quinta-feira parecia ser apenas mais uma condenada ao destino das duas anteriores, encurtadas pela chuva, até que o céu deu tréguas e o ambicioso plano de completar 55 encontros de singulares teve início. Naquela altura ainda não o sabia, mas o que estava prestes a viver ia muito rapidamente alcançar a eternidade.

Quando o último aguaceiro terminou já os ponteiros do relógio tinham dado as 20h. A missão tinha sido iniciada horas antes, interrompida, retomada e novamente interrompida e por isso foi já com o sol a esconder-se — os renovados Court Philippe-Chatrier e Court Suzanne-Lenglen fazem com que a luz natural escasseie mais cedo do que era habitual há cinco anos no Stade Roland-Garros — que o cenário dantesco terminou e deu lugar a uma enorme galeria de arte a céu aberto.

Dei por mim a percorrê-la como quem queria desafiar o impossível e visitar Louvre e Pompidou na mesma noite. Porque foi disso que se tratou, uma procura incessante pelo renascimento de uns e o surrealismo de outros, tão depressa surgiam novas obras primas.

Ziguezaguear entre um complexo tão grande e vários encontros em simultâneo não resulta, por vezes, em mais do que uma mão cheia de boas fotografias ou uma sequência de tweets. Mas desta vez foi diferente. Com alguns cálculos e alguma sorte à mistura, o que aconteceu assemelhou-se tanto quanto possível a uma visita guiada pelas obras mais completas e mais distintas.

Fui apanhado de surpresa pelo recomeço célere (recomendo a todos os que visitem Roland-Garros pela primeira vez e que tenham o azar de encontrar chuva que dediquem dois minutos a observar os trabalhos das equipas de manutenção quando são instruídas a colocar ou retirar as lonas) e apressei o jantar.

A minha primeira sala de exposições era literalmente uma estufa, o lindíssimo Court Simonne-Mathieu, que para além de reunir plantas de cinco continentes tem vista para a Torre Eiffel. Lá jogava um francês. E quando um francês joga em Roland-Garros e está encaminhado para algo grandioso então testemunhá-lo, caro leitor, é obrigatório. O público francês é único, por vezes excede-se — a polémica dos últimos dias tem sido vigorosamente exagerada, veja-se o chinfrim que australianos e norte-americanos fazem, esses sim, constantemente devido ao álcool — e dá que falar, mas também é capaz de tornar um ambiente naturalmente morno em algo inesquecível. Neste caso, um quadro banal numa obra de arte referida no programa da exposição.

Corentin Moutet fez a sua parte e depois de um terceiro set a zeros consumou a vitória sobre Alexander Shevchenko. Foi um bom aquecimento para o que aí vinha, porque exatamente do outro lado do complexo (mais 600 metros…) o céu por cima de Taylor Fritz evocava Claude Monet e logo ali ao lado começava a nascer a primeira obra de arte.

Venho das Artes e Wassily Kandinsky cedo se tornou no meu pintor favorito, portanto foi nele e mais concretamente na sua Composição VII (para tristeza dos franceses exposta em Moscovo e não entre a vasta coleção do fabuloso Centre Pompidou no 4e arrondissement) que pensei quando o Court 14 se transformou num campo de batalha (uma referência a Guernica seria não só demasiado evidente como falaciosa, pois aqui só trabalho com uma metáfora). Holger Rune estava a ganhar confortavelmente por dois sets a zero até que apareceu a melhor versão de Flavio Cobolli, o campeão do Del Monte Lisboa Belém Open que talvez ainda vista os boxers de Cristiano Ronaldo, mas que agora é patrocinado pela On que Roger Federer ajudou a tornar global.

A partir dali percebi rapidamente que algo de glorioso estava a acontecer. Os espetadores levantavam-se, gritavam, cantavam (alguns até procuravam frases impróprias em italiano para exclamarem lá para dentro…) e acima de tudo deliravam com a qualidade que subia a pique à medida que Cobolli forçava um quinto set. Foi tudo tão bom que ninguém queria que acabasse e quando ainda houve tempo para uma última reviravolta e Rune sobreviveu a um 0-5 no match tie-break decisivo — que muitos julgavam terminar aos 7 e não aos 10, como nos pares — foi uma enorme festa, o povo reunido a celebrar o que durante tantas horas ansiou ver.

Poucos minutos antes já Victoria Azarenka e Mirra Andreeva tinham iniciado o duelo geracional tão aguardado, o último a começar e para lá das 22h30. Mas já lá vamos, porque do Court Suzanne-Lenglen vinha um enorme ruído.

Agora sim, perdoem-me o básico, mas é irresistível: se Casper Ruud fosse um quadro teria de ser Mona Lisa, a cara inalterada, intransponível e indecifrável a assemelhá-lo à obra prima de Leonardo da Vinci, esta sim disposta no exlibris de Paris. O norueguês nunca perdeu a calma e mesmo quando esteve em sérios apuros resistiu a Alejandro Davidovich Fokina, celebrando também ele em cinco partidas para juntar o nome a esta vernissage.

Sempre ouvi dizer que quem tudo quer, tudo perde e por isso sabia que a dada altura teria de fazer escolhas. Um autêntico crime, este, o de escolher que galeria saltar, que artista ignorar, que obra perder.

Perdi, por exemplo, a reinterpretação de La Liberté guidant le peuple (A Liberdade guiando o povo, de Eugène Delacroix) com que a russa-naturalizada-francesa Varvara Gracheva regressou à terceira ronda. E a escandalosa eliminação de Karen Khachanov perante Jozef Kovalik depois de estar a liderar por 6-4, 6-4 e 4-2, digna de um cenário pintado por Caravaggio.

Mas ao contornar o Court Suzanne-Lenglen ainda cheguei a tempo do renascimento de Thanasi Kokkinakis, o australiano que esteve a perder por dois sets a zero e por um break no quarto parcial antes de consumar a reviravolta por 1-6, 4-6, 6-3, 7-6(5) e 6-2 contra Giulio Zeppieri, o italiano que ao 5-5 do tie-break que lhe podia ter dado a vitória falhou um smash escandaloso em cima da rede, tão dramático quanto algumas das obras do seu compatriota.

Por esta altura já a adrenalina se sobrepunha ao cansaço e tudo era possível, pensava, por isso decidi-me por mais uma visita a uma galeria afastada, o modesto Court 5. Não tive a sorte de Jannik Sinner, que lá chegou bem a tempo de ver a namorada Anna Kalinskaya, e fiquei do lado de fora do court a assistir, entre a vedação e as cabeças dos muitos curiosos, aos últimos minutos do embate que acabou por sorrir a Bianca Andreescu.

Ainda ouvi exclamações como “vai fazer uma dupla falta” ou “esta bola fica na rede” enquanto um grupo de jovens ao meu lado ansiava que a canadiana fosse quebrada (enfrentou três pontos de break) quando serviu para a vitória, pois nesse caso o marcador permitiria a nossa entrada. Dei por mim a pensar o mesmo, ou parecido, porque em momentos destes é intrínseco ao ser humano desejar o épico.

Foi mais uma derrota pessoal, a porta da galeria a fechar-se na minha cara e a alertar-me para o encerramento do museu. Mas ainda havia um corredor iluminado. E assim lá fui eu, de trás para a frente e de frente para trás, até à última obra desta expedição.

Já passava da meia-noite quando Azarenka, de 34 anos, e Andreeva, de 17 anos, começaram o terceiro set — o 10.º parcial decisivo de uma jornada que desafiou a lógica e milagrosamente não deixou pontas soltas. Recordo-me de terminar a minha primeira visita ao Centre Pompidou numa sala dedicada a Jackson Pollock e sim, foi ele o último pintor em que pensei nesta noite.

A bielorrussa e a russa desataram a pintar as linhas do court como o norte-americano fazia com as suas telas, mas ali não havia nada de abstrato. Tudo era pensado, tudo era intencional, tudo tinha como propósito um resultado bem concreto: a vitória. E foi a mais nova quem a assinou, ao evitar uma sétima quebra de serviço consecutiva para voltar a dar provas de que já faz parte de uma exposição permanente.

Eram 00h59, estava exausto e radiante ao mesmo tempo e começava a pensar neste texto, mas também nos dois últimos parágrafos de outro que publiquei horas antes.

Como em qualquer exposição, a reflexão é um processo contínuo e não tem de ter um fim.

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