Meia-noite em Paris. Ou como na cidade luz Roland-Garros mudou de identidade

Os marcadores reluziam pelas bancadas fora, dos courts ouviam-se gritos de desespero pela dificuldade em seguir a bola amarela e em simultêno da bancada surgiam esgares de quem pressentia estar próximo o momento de recolher, privado de um desfecho. A hora de interromper uma jornada em Roland-Garros devido à falta de luz natural era recheada de tristeza, mas característica de um torneio que, em meia década, mudou tanta da sua identidade quanto no meio século anterior e deu origem a uma nostalgia traiçoeira. Afinal, que sentido faz sentir saudades do desespero?

Por Gaspar Ribeiro Lança, em Paris

As minhas primeiras memórias de Roland-Garros levam-me aos tempos em que o Court Philippe-Chatrier era composto por assentos verdes de cima a baixo, a pequeníssima exceção a serem as cadeiras pretas que compunham a bancada presidencial. O lucrativo acordo de patrocínio com o BNP Paribas — antigos Banque Nationale de Paris e Paribas — assim o ditava, sendo esse um pormenor meramente estético, mas de tal forma marcante pela sua visibilidade que a minha recordação será também a de muitos outros.

Essas cadeiras vi-as apenas pela televisão, pois o ano da minha primeira viagem até ao Stade Roland-Garros (2019) foi precisamente o ano em que o plástico deu lugar à madeira e o verde milionário foi substituído pelo bege clássico. Foi o ano da inauguração do renovado Court Philippe-Chatrier, que entre a edição anterior e esta, em que tive pela primeira vez uma credencial de imprensa Raquetc para um torneio do Grand Slam (num meio em que os grandes títulos e os grandes grupos continuam a dominar, continua a ser um grande motivo de orgulho para mim), foi demolido em 80% e reerguido.

Os franceses cumpriram os prazos à risca e assim já só conheci a nova estética dos palcos principais, pois também o Court Suzanne-Lenglen teve direito a assentos novos, très chic.

A sala de imprensa foi uma das duas exceções, a solução temporária a ser um semi-cubículo subterrâneo, apertado, com péssima localização (que obrigava a atravessar multidões fosse qual fosse o destino) e acesso através de uma “casa de gengibre”, o único aspeto memorável de uma situação que, sabia-se e compreendia-se, tinha os dias contados desde o início. Os trabalhos foram para melhor e a nova sala de imprensa, no piso -1 do court principal e com acesso direto à tribuna no piso 3, é soberba.

Podem escrever-se linhas infinitas sobre as mudanças visuais (e são muitas, mesmo muitas), mas no que diz respeito ao desporto e a um evento desta dimensão a prática continua a ultrapassar a estética. E por isso foram as outras mudanças, também elas bem visíveis e levadas a cabo no mesmo período, que transformaram o torneio e deram a Roland-Garros uma nova identidade.

Já aqui dei conta dos vários trabalhos de renovação levados a cabo nestes últimos anos, inclusive quando há uma semana escrevi sobre a disruptiva alteração de perceção do torneio. Nesse meu primeiro ano, para além da ansiada sala de imprensa, ainda faltava a bem mais importante cobertura amovível do Court Philippe-Chatrier, ela sim capaz de mudar o rumo da quinzena. Inauguraram-na em 2020, ano de pandemia, e desde esse fatídico ano passou a assegurar que aqui, na catedral da terra batida, acontecia sempre, independentemente do sol ou da chuva, algo.

(a proeza multiplicou-se quatro anos depois e parte deste texto ganha forma enquanto assisto a um par de encontros que só acontecem porque também o Court Suzanne-Lenglen passou a ter um “guarda chuva”)

Mas cobrir o que era descoberto implica, também, iluminá-lo.

E foi assim que, na cidade luz, a catedral da terra batida passou a ter luz e mudou de hábitos. Com junho no horizonte os dias em Paris já são longos e as jornadas sempre se estenderam bem para lá das 21h, mas era certo que as ruas do 16e arrondissement voltavam a ficar cheias ainda a noite não se tinha instalado por completo. Ao mesmo tempo, quem acompanha Roland-Garros pela televisão em Portugal há vários anos sabia que, independentemente do que estivesse a acontecer no ecrã, conseguia sempre levar os talheres à boca a tempo de tratar tal ato como hora de jantar. Sol ou chuva, os dias em Roland-Garros tinham as horas contadas.

Até que a revolução de 2020 instaurou uma nova era. À 119.ª edição, a noite deixou de ser um problema e tornou-se parte da solução.

Nunca mais em Roland-Garros se ouviu dizer que um encontro estava prestes a ser “interrompu par l’obscurité”, pois para a escuridão passou a haver um antídoto. Assim que ganhou o prolongado braço de ferro e acabou com as dúvidas relativas a uma possível saída do complexo fundado em 1928 e teve a certeza de poder expandi-lo para acompanhar o ritmo dos restantes torneios do Grand Slam, a Federação Francesa de Ténis apressou-se a fazer uso da invenção de Thomas Edison e equipou todos os courts — ênfase em todos os courts — com iluminação artificial.

Em 2019, passar um serão nas instalações do Stade Roland-Garros foi parte da experiência que escolhi viver. Os courts a esvaziarem, o público a sair, o silêncio a apoderar-se de um complexo cada vez mais vazio, cada vez mais calmo, cada vez mais restrito. Aquela noite foi uma exceção na minha rotina.

Desde então, trocar um serão destes por um nas ruas e nos cafés de Paris ganhou muitas vezes um significado diferente. A história que tantas vezes ficava por ser feita no dia seguinte passou a ser feita na mesma noite, o número de courts pelo qual se distribui diretamente ligado à proporção de chuva, mas não só, porque mesmo nos dias solarengos passou a haver ténis além-pôr do sol.

Os courts estão cada vez mais lentos, as bolas não ajudam e a quantidade de encontros com duração superior a três horas sobe a pique em relação às décadas anteriores. Tudo contribui para que na terre battue de Roland-Garros os dias se prolonguem e nem a divisão da primeira ronda por três dias (tão polémica quando instaurada de forma inovadora em 2006) serve de antídoto. Porque não há antídoto para o que é desejado.

Roland-Garros quis mudar e passar a contar histórias todos os dias com a ajuda dos holofotes.

Há muito que no Australian Open e no US Open acontecem sessões noturnas. Melbourne e Nova Iorque tornam-se outras e os encontros que acontecem nesse período chegam a mais continentes, a mais países, a mais casas, a mais espetadores. Também dão origem a mais vendas, pois cada assento divide-se por dois (sessão diurna e sessão noturna) e prolonga a estadia de milhares de espetadores num recinto que para além de almoços e lanches passa a preparar jantares — dificilmente abaixo dos 20€ por cabeça.

Aqui, no entanto, as sessões noturnas do Court Philippe-Chatrier (um único encontro não antes das 20h15) são quase sempre fiasco e acima de tudo muito polémicas. O torneio teima em dar palco aos homens, insistindo neles como um melhor produto premium e refugiando-se na desculpa de que os encontros são à melhor de cinco sets e não à melhor de três, como entre mulheres. Uma ingenuidade a roçar o infantil, de quem ainda acha que duração é sinónimo de qualidade…

Mas lá fora, nos courts exteriores, a experiência tornou-se indiscutivelmente melhor para os espetadores, que deixaram de ser privados de cantar victoire, e o já animado ambiente de Roland-Garros até ganhou uma outra dimensão, ainda mais épica quando a noite cai e há uma batalha a desenrolar-se em direção à eternidade.

É inegável que a existência de iluminação artificial facilita e muito a gestão do torneio depois de a chuva dar tréguas, pois jogar pela noite dentro permite compensar o tempo perdido e gerir o caos dentro do caos.

Ainda assim, e perdoem-me o desabafo, tenho saudades dos tempos em que um torneio com a dimensão de Roland-Garros punha totalmente a nu as fragilidades do ténis. As jornadas encurtadas, os encontros interrompidos e as vitórias em suspenso também são história.

Resta-nos Wimbledon, a catedral da tradição, onde as muito rígidas restrições a favor dos moradores de Church Road impedem que se jogue para lá das 23h — o que leva a organização a nem considerar erguer postes de iluminação nos courts exteriores. Teremos sempre Paris Londres.

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