Rafael Nadal desce à terra dos mortais e diz um “muito provável” adeus a Roland-Garros

Paris ansiava por mais um milagre, mas Rafael Nadal perdeu o altamente aguardado encontro da primeira ronda com Alexander Zverev que soube a despedida. O adeus estava, inclusive, preparado, só que as palavras do espanhol na antevisão ao torneio fizeram a organização dar um passo atrás e por isso não haverá uma cerimónia em Roland-Garros, onde há três anos existe uma estátua do espanhol que atesta a insanidade do legado na catedral da terra batida.

Por Gaspar Ribeiro Lança, em Paris

Com o tempo húmido e muita chuva, foi como se os deuses do ténis quisessem que Roland-Garros parasse para que se recebesse Rafael Nadal.

Debaixo da cobertura e com as bancadas cheias, totalmente cheias, o Court Philippe-Chatrier vestiu-se a rigor para uma primeira ronda com sabor a final e levantou-se para aplaudir a entrada do 14 vezes campeão, mais ruidosa só a ovação a propósito da já bem famosa e aguardada apresentação com que Marc Maury enumera, um a um, os anos dourados do maiorquino na capital francesa.

Estava em causa o prazo de validade da mais longa epopeia deste desporto de raquetas e ninguém — absolutamente ninguém — queria ficar de fora.

Alexander Zverev surge na quarta posição da lista de cabeças de série, mas vários passos à frente de Novak Djokovic (ainda sem títulos este ano), Jannik Sinner (ausente do circuito há um mês com problemas na anca) e Carlos Alcaraz (a recuperar de uma lesão no braço) no momento de forma, comprovado com o troféu de Roma que aumentou o peso da bagagem para Paris.

O sorteio não podia ter sido pior e dentro das linhas que o eternizaram a teoria confirma-se, os parciais de 6-3, 7-6(5) e 6-3 a significarem a primeira (isso mesmo) derrota em três sets nos 116 encontros realizados em Roland-Garros, onde Nadal perdeu apenas pela quarta vez.

Não houve espaço para um último milagre, mas o duelo desta segunda-feira deixou bem patente a fibra do touro maiorquino. Também foi um sinal dos tempos, porque pelos dedos das mãos — sempre protegidos pelos adesivos que o caracterizam — escaparam-lhe oportunidades que não fazem parte da sua identidade.

Os finais felizes tornam-se mais improváveis quanto maior é a vontade de desafiar o que já é anormal. Roger Federer, Rafael Nadal e Novak Djokovic sabiam-no quando se propuseram a ir além dos limites biológicos, os 30 anos a tornarem-se nos novos 20 e a abrirem-lhes as portas da eternidade.

Ter o final desejado quando no calendário o 38.º aniversário está marcado para breve é, por isso, mais um sonho do que um objetivo palpável, ainda que o sonho comande a vida e, neste caso, a história. Mas é de Nadal que estamos a falar e é em Roland-Garros que estamos, uma combinação sem precedentes que redefiniu o impensável e inverteu o jogo, tornando um sonho individual num sonho de massas.

Os cerca de 15.000 espetadores que preencheram todas as cadeiras do Court Philippe-Chatrier vieram para uma possível despedida, sim, mas também para uma possível repetição do sonho que já tantas vezes viram ser cumprido e que, por inerência, se tornou deles. Trouxeram bandeiras espanholas, mesmo tendo muitos deles o francês como primeiro idioma, trouxeram merchandise a rigor e trouxeram, claro, os telemóveis recheados de bateria para os momentos inolvidáveis que estavam garantidos, desde logo com a primeira introdução, seguida da apresentação durante o aquecimento e do espetáculo propriamente dito.

Para trás ficaram as semi-trágicas campanhas em Barcelona, em Madrid e em Roma, torneios que outrora dominou e que desta vez lhe deram o choque com a realidade próprio de quem já não consegue contrariar o corpo. Esta segunda-feira, de volta ao seu jardim, Rafael Nadal deixou tudo isso de parte e foi a sua melhor versão de 2024.

Uma versão que, contra uma boa porção dos jogadores que compõem o quadro, teria sido suficiente para manter acesa a chama.

Mas não contra Zverev, não contra o vencedor do último ATP Masters 1000 em terra batida, não contra o jogador que há dois anos ameaçava derrotá-lo antes de uma arrepiante lesão o obrigar a sair do court com a ajuda de canadianas. Mais do que uma sede de vingança, essa sede de fazer as pazes com o passado apoderou-se do alemão e ajudou-o a construir uma das vitórias mais especiais da carreira com uma exibição que, não sendo perfeita, roçou por várias vezes a perfeição e fez dele apenas o terceiro jogador (depois de Robin Soderlin em 2009 e de Novak Djokovic em 2015 e 2021) a superar Nadal em Roland-Garros.

Esta segunda-feira, 27 de maio de 2024, Rafael Nadal desvinculou-se do passado e abraçou o futuro. Ainda que imortal, revelou-se de carne e osso e cedeu, também ele, na terre battue onde mais história escreveu.

Talvez o fim não seja este, talvez a mente e o corpo o levem a tentar uma última vez em 2025, desafiando novamente as probabilidades e até o discurso de que “muito provavelmente” a história acaba agora.

Mas a história de Roland-Garros sem o seu máximo campeão entre a lista de favoritos começa aqui, neste dia em que o último ato lhe foge das mãos.

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