Os franceses respiram ténis e nas ruas de Paris sente-se desde o primeiro instante a paixão pela bola amarela. Os torneios do circuito secundário enchem de Norte a Sul do país como em nenhum outro e chegado o quinto mês do ano todos os caminhos vão dar ao Stade Roland-Garros, onde a festa se faz, cada vez mais, ao longo de três semanas.
Por Gaspar Ribeiro Lança, em Paris
A minha quarta vez em Roland-Garros é a minha primeira no qualifying. Foi uma decisão de última hora, tomada por quem ao longo do ano acompanha por Portugal de cima a baixo os que agora cá vêm pela primeira vez. A oportunidade de assistir às estreias de Jaime Faria e Henrique Rocha em torneios do Grand Slam e de Francisca Jorge a este nível no velho continente era imperdível, pensei.
São 10h30 de segunda-feira e o metro que me leva à estação de Porte d’Auteuil vai cheio. Os 10 minutos de caminhada que se seguem faço-os sempre com companhia, as estradas cortadas e preparadas para as centenas de pessoas que para lá se dirigem comigo. Passo o primeiro controlo de segurança, passo o segundo, passo o terceiro (afinal, é de Paris que estamos a falar) et voilà, bienvenue à Roland-Garros.
O trajeto até ao gabine de imprensa leva-me a atravessar metade do recinto utilizado por estes dias (a belíssima zona da Orangerie e do Court Simonne-Mathieu é aberta ao público durante o ano, por isso requer preparativos de última hora). E só preciso de alguns minutos dentro da catedral da terra batida para perceber que a ideia de que Roland-Garros é um evento a dois tempos — com uma semana de aquecimento antes da quinzena de quadros principais — está ultrapassada.
O investimento de centenas de milhões de euros em renovações das instalações levado a cabo pela Federação Francesa de Ténis ao longo da última década trouxe Roland-Garros para outro patamar. Em várias dimensões: desde logo pelo aumento espaço do recinto, cada vez mais fluído apesar das naturais limitações circundantes, mas também pela renovação quase total, com destaque para os palcos principais.
Em 2019, o meu primeiro ano em Roland-Garros, tive a sorte de assistir aos últimos encontros no Court 1, o chamado “Bullring” — por ser semelhante a uma praça de touros — onde 14 anos antes Rafael Nadal cumpriu a estreia no torneio. O terceiro maior court do complexo era icónico, mas a demolição permitiu a construção de uma praça aberta muito necessária para melhorar a circulação e permitir momentos de relaxamento do público, desde então com uma vasta área de piquenique e um ecrã gigante ao estilo de um cinema ao ar livre.
Nesse mesmo ano foram inaugurados o Court Simonne-Mathieu, que no seguinte herdou o estatuto de terceiro mais importante do complexo, e o novo Court Philippe-Chatrier, demolido e reconstruído em tempo recorde e com uma revolucionária cobertura amovível para combater a chuva que quase sempre visita Paris. Desta vez foi o Court Suzanne-Lenglen a ganhar um teto retrátil.
Estas são as renovações à vista de todos. As outras, tão invisíveis quanto essenciais, restringem-se à imprensa (o media center foi transferido de uma das bancadas laterais do court central para o piso subterrâneo, topo de gama, e em todos os campos existem assentos reservados e nalguns até acesso à eletricidade, porque as baterias não são infinitas e há deadlines a cumprir) e aos protagonistas — as áreas de jogadoras são maioritariamente subterrâneas e estão concentradas entre o Court Philippe-Chatrier e o Court Suzanne-Lenglen, garantindo privacidade aos jogadores e respetivas equipas técnicas, que transitam entre os três maiores courts longe dos olhares do público.
As dores de crescimento foram combatidas a uma velocidade supersónica. E se é verdade que nunca poderá equiparar-se a Melbourne Park e Flushing Meadows (ou até ao All England Club uma vez aprovada a tão ambicionada expansão para o antigo parque de golfe adjacente), o Stade Roland-Garros transpira elegância e os franceses sabem-no. Transpira, até, uma certa ostentação, como quando chega a hora de iluminar os courts e os postes de iluminação sobem para dar luz aos heróis.
Mas este não é um texto sobre renovações. O breve resumo é, no entanto, essencial para se compreender o fenómeno de massas em que se tornou o qualifying.
Ávido pelos deslizes na melhor terra batida do mundo, pelos cânticos apoiados nas trompetes e pelas histórias que se escrevem desde o primeiro dia, o público responde com cada vez mais entusiasmo à chamada.
Fui ingénuo ao pensar que neste primeiro dia poderia caminhar tranquilamente pelo recinto enquanto aguardava pelas estreias das nossas jovens estrelas. A colossal sala de imprensa no piso -1 do Court Philippe-Chatrier está, sim, praticamente vazia, mas assim que subo ao piso 0 volto à realidade.
Com os bilhetes esgotados, percebo rapidamente que o primeiro dia de qualifying é, simplesmente, o primeiro dia de Roland-Garros, com a casa cheia e o trânsito no recinto a que estou habituado mais para o final do mês — em 2023 cheguei a demorar 22 minutos a atravessar o Stade Roland-Garros de uma ponta à outra…
Ainda é cedo, mas não há tempo a perder.
Com 40 franceses no qualifying (28 homens, 12 mulheres), um recorde neste século, as primeiras oportunidades de respirar Roland-Garros surgem logo nas primeiras horas da jornada inaugural.
Enzo Couacaud é o primeiro a celebrar com uma reviravolta que leva o Court 7 à loucura, mas é no também renovado Court 14 (de visita obrigatória quando tem gauleses em ação) que se vive o primeiro pico de energia.
Interrompo a minha primeira tarefa do dia para assistir aos últimos jogos do confronto entre dois franceses, Gabriel Debru e Valentin Vacherot, que de raqueta na mão representa o Mónaco e por isso veste o papel de vilão. Sem cadeiras à vista, fico de pé como tantos outros adeptos, um cenário habitual neste campo e de certa forma apetecível pela epicidade que acrescenta. Os aplausos ao jogador da casa após salvar match points transformam-se em assobios para o forasteiro quando este celebra a vitória imitando o gesto de sentar-se numa sanita antes de atirar uma bola na direção do público, dando origem ao primeiro apupo coletivo do torneio e a uma longa conversa com o adversário e o árbitro de cadeira.
Volto a ficar preso no trânsito como se da primeira semana de quadro principal se tratasse, mas lá regresso ao meu destino. Este ano, o Court Suzanne-Lenglen abre as portas ao qualifying pela primeira vez na história do torneio — o que leva a organização a estimar a entrada de 75.000 fãs durante os cinco primeiros dias, um aumento de 50% em relação ao recorde de 2023.
A decisão comprova-se certeira logo nas primeiras horas e Dominic Thiem é recebido em apoteose. Ignorado pela organização na hora de atribuir os wild cards, o finalista de 2018 e 2019 que há dias anunciou a decisão de terminar a carreira no final do ano recebe dos fãs o carinho de sempre e atua perante quase 10.000 espetadores (com o desenrolar do encontro as bancadas ficam praticamente cheias).
Não fosse o formato à melhor de três sets e este seria um dia como todos os outros em Paris, onde Thiem esteve por duas vezes perto da eternidade. Aliás, o próprio admite-o em declarações à imprensa depois da suada vitória, numa zona mista que sabe a pouco para um jogador deste calibre, mas que neste contexto permite uma proximidade rara. Descarta com muita humildade qualquer polémica relacionada com a ausência de um wild card e desfaz-se em elogios à adesão do público, mas tal como eu, umas horas antes, admite que já devia estar à espera por conhecer bem a paixão dos franceses.
Com tempo para matar antes das estreias, a primeira visita à imperdível Grande Boutique — a principal loja de merchandise — revela-se impossível tal é a fila. Também as bancas de crepes, cachorros e outras opções têm longas esperas, comprovando a adesão do público. Opto então pela primeira expedição ao Court Philippe-Chatrier, aproveitando a semana de qualifying para ocupar uma das cadeiras nas primeiras filas ao invés da tribuna de imprensa no anel superior. O palco principal está reservado para treinos e o das 17h é o primeiro de Rafael Nadal, que duas horas antes já tem à sua espera centenas de fãs determinados em garantirem os melhores lugares possíveis.
À saída do Chatrier vejo o Court 4, onde breves minutos depois entra Francisca Jorge. A melhor tenista portuguesa da atualidade carregou o peso de ter herdado demasiado cedo o estatuto de número um nacional (Michelle Larcher de Brito e Maria João Koehler retiraram-se muito novas), mas agora colhe os frutos de muito trabalho e joga pela segunda vez consecutiva um torneio do Grand Slam.
Por ser o primeiro na Europa, ao meu lado estão os pais, que a vêem de perto concretizar o sonho de criança — sempre me falou de Roland-Garros como o torneio que ambicionava jogar. Rocha e Faria aproveitaram a curta distância entre Lisboa e Paris para fazer o mesmo e mais tarde também eles atuam perante as famílias.
Nem todos os courts enchem com as mesmas proporções, mas neste modesto campo volta a ser bem audível a comunidade portuguesa que permite à vimaranense sentir-se praticamente em casa no encontro com a japonesa Sara Saito. As emoções acabam por levar a melhor e a estreia não é a desejada, mas ninguém tira a Francisca Jorge o facto de ser apenas a sétima mulher portuguesa — e a primeira nos últimos nove anos — a ir a jogo em Paris.
O encontro acaba e a caravana move-se até ao Court 11, onde o já iniciado braço de ferro de Henrique Rocha frente a Radu Albot vai reunindo cada vez mais espetadores à medida que o equilíbrio aumenta. Os aguaceiros esperados dão lugar a uma tempestade surpreendente que tudo muda, enquanto no Suzanne-Lenglen é ativada pela primeira vez a cobertura amovível. Ouve-se A Marselhesa enquanto joga Lucas Pouille, os cânticos repetem-se para Benoit Paire e Roland-Garros usufrui com todo o seu esplendor das obras que tiraram o torneio da retaguarda, pois foi o último dos quatro Grand Slams a evitar uma paragem total quando chove.
Num ano de estreias (Taça Davis, título Challenger, top 200), esta fica perto de ser mais uma com final feliz para o jovem do Porto que há vários anos se mudou para Lisboa. Mas não é, custa-lhe como horas antes custou à amiga e dá a este primeiro dia contornos cinzentos, já o céu tinha avisado.
Os 10km percorridos na véspera repito-os na terça-feira, mas pelas ruas de Paris, numa manhã em que me cruzo com um outdoor gigante de Iga Swiatek (On) na Place D’Estienne D’Orves e vejo passar vários Novak Djokovic (Lacoste) numa rede de autocarros turísticos. As estrelas invadem a cidade.
Está sol, mais do que se esperava, mas acaba por ser em condições indoor que o último português vai a jogo.
Jaime Faria é o jogador sobre quem mais escrevi este ano. Tive a sorte de o acompanhar nas últimas três das quatro semanas invictas no Algarve, tal como na impressionante estreia em torneios ATP no Millennium Estoril Open (passou o qualifying) e durante a mais recente campanha dourada no Jamor, onde venceu pela primeira vez um Challenger. Vi-o resistir ao vento, à chuva, ao cansaço e de repente às expetativas e ao favoritismo com que quem sobe do 411.º ao 183.º lugar em meros cinco meses tem de lidar.
E de repente ali está ele, o único dos três portugueses sem bagagem a este nível (Francisca Jorge já tinha jogado o Australian Open, Henrique Rocha esteve em três como júnior e um deles foi Roland-Garros, onde a presença na segunda semana lhe permitiu familiarizar-se com o espaço e até com o ambiente esmagador), a agradecer de mão no ar os aplausos enquanto entra no Court Suzanne-Lenglen.
Os encontros do Court 6 prolongaram-se de tal forma que a organização transferiu o embate do português frente ao francês Clement Tabur para o segundo maior palco. Ótimas notícias para mim, prestes a entrar numa corrida contra o tempo com um voo para apanhar ao início da noite, à partida menos boas para quem mais interessava, pois subitamente a estreia num torneio do Grand Slam acontece perante 5.000 franceses que apoiam o adversário.
Nada disso importa e tão depressa quanto foi informado da decisão despacha o assunto. São 66 minutos desde o primeiro ao último ponto, o segundo set já só vejo no shuttle a caminho do aeroporto enquanto ainda nas bancadas vários portugueses exultam com a exibição souplesse da nova sensação do ténis português.
Sob o olhar atento — e nervoso — da mãe, do irmão, dos treinadores Rui Machado, Pedro Sousa e Neuza Silva (todos do CAR que atualmente integra) e ainda André Leite, do Clube de Ténis CAD que o formou e ao qual fez questão de agradecer de microfone na mão três dias antes, ao erguer o troféu no Central do Jamor. Esse discurso foi de campeão e esta estreia também, mais um português a ir a Paris concretizar um sonho.
A fatídica hora de espera no quase sempre exasperante controlo de segurança em Orly (afinal, é de Paris que estamos a falar) torna-se bem mais leve. Para mim segue-se o regresso a casa por três dias até voltar para cobrir a primeira semana do quadro principal, essa sim devidamente planeada com antecedência, mas por lá Roland-Garros continua, de vento em popa, como um torneio de três semanas.
Excelente artigo, que descreve de forma fiel a magnifica experiencia de RG. Se se lamenta o maior aperto pela afluencia crescente, não deixa de impressionar o amor ao ténis de tanta gente e o magnifico ambiente criado, justo prémio para grandíssimos jogadores e atletas que nem sempre logram alcançar o sucesso e o proveito económico merecido, apesar de todo o esforço e talento manifestados.
Parabéns pelo bom trabalho