Destinado a grandes feitos desde que optou pelo ténis em detrimento do ski, foi chamado de pecador e acusado de abandonar a pátria. Até que, em Málaga, reconquistou até os mais céticos dos italianos.
Por Gaspar Ribeiro Lança, em Málaga
Jannik Sinner foi chacinado pela imprensa do seu país quando, em setembro, optou por não defender as cores da Itália na fase de grupos da Taça Davis… em Bolonha. Matteo Berrettini também abdicou dessa semana, mas na sequência de uma lesão sofrida no US Open, agravando a decisão do mais novo, dias depois de malas feitas para iniciar a gíria asiática.
As manchetes de revolta surgiram um pouco por toda a imprensa, com a histórica Gazzetta dello Sport a desempenhar um papel principal na onda de contestação, e o entusiasmo em torno de um dos jovens mais promissores sofreu um duro golpe “dentro de portas”.
De um dia para o outro, o que Sinner já fizera e prometia continuar a fazer foi posto de parte porque “l’azzurro si ama”, ou seja, a camisola italiana ama-se, não se abandona.
As críticas da imprensa especializada multiplicaram-se e a elas juntaram-se as de históricos como Nicola Pietrangeli, ainda que a antiga lenda do ténis italiano tenha optado por um discurso relativamente generalizado na hora de comentar a decisão individual de Sinner, não comprometendo em demasia uma relação que se quer, no mínimo, cordial.
Para alívio dos italianos, Matteo Arnaldi, Lorenzo Sonego e Lorenzo Musetti deram conta do recado e, sem Sinner, Berrettini ou até mesmo Fábio Fognini, saíram de Bolonha com o segundo lugar no Grupo A e o respetivo bilhete para a Final 8 de Málaga.
Fast forward até ao final de novembro e tudo Jannik Sinner levou.
A protagonizar uma reta final de temporada impressionante (coincidentemente ou não iniciada com um título em Pequim), o jovem de 22 anos que desde muito cedo esteve destinado a grandes feitos carregou o peso de uma nação, vestiu a capa de herói e ofereceu à Itália a redenção sob a forma de um segundo título na Taça Davis — primeiro desde 1976.
Uma semana antes, em Turim, Sinner foi a personagem principal do ATP Finals até ao último dia, onde um Novak Djokovic que podia ter eliminado antes (venceu o sérvio na fase de grupos e teria consumado a sua eliminação com uma derrota no terceiro encontro) obteve a desforra para lhe negar a festa em casa.
Feitos os 1900km de viagem, os dois chegaram a Málaga como estrelas maiores da segunda edição da fase final a acontecer na Costa Azul espanhola — e quarta consecutiva no país, do qual a nova versão da Taça Davis ainda não saiu. Mas a Taça Davis não é uma competição individual e por isso os dois jogadores mais cotados cruzaram-se antes da ronda decisiva, numa meia-final que ficará para a história e que terá de ser lembrado em todas as descontrações dedicadas à carreira do transalpino.
O guião foi digno das mais rebuscadas ficções: novamente obrigado a ganhar para manter viva a sua seleção contra a Sérvia (já tinha sido assim frente aos Países Baixos dois dias antes), Sinner venceu tranquilamente o primeiro set, viu Djokovic aplicar-lhe o mesmo remédio no segundo e correu sempre atrás do prejuízo no terceiro, em que o sérvio foi o que mais pressionou até alcançar um 0-40 na resposta que se traduziu em três match points consecutivos.
O resto é história, literalmente. Sinner anulou não um, não dois, mas três pontos de encontro de uma rajada, embalou para o break logo no jogo seguinte e tornou-se no primeiro jogador a derrotar Djokovic depois de anular três match points seguidos — e apenas no quarto a vencer o sérvio depois de estar a um ponto da derrota.
Tal como em Turim, também em Málaga o público ficou rendido.
Essa vitória valeu-lhe a ovação da semana e deu-lhe uma aura só ao alcance de um restritíssimo leque de estrelas nas últimas décadas.
Não satisfeitos com três episódios da rivalidade Sinner-Djokovic em duas semanas, os deuses do ténis voltaram a colocá-los frente a frente 30 minutos depois.
Com casa cheia e um ambiente frenético para um par decisivo a fazer lembrar a tradicional Taça Davis, o italiano disse sim ao capitão, regressou à ação com o mesmo Lorenzo Sonego com quem já tinha ganho um par crucial e explorou a ferida deixada em aberto pelos sérvios: não só Djokovic é totalmente diferente nos pares, como não teve tempo nem condições para a necessária digestão de uma devastadora derrota que comprometeu as suas aspirações de dar à Sérvia um segundo título.
O que Jannik Sinner fez num só dia contra o melhor tenista de todos os tempos foi de tal forma transcendente que não só banalizou o impressionante triunfo de domingo, por 6-3 e 6-0 em 81 minutos contra o número 12 mundial para resolver o título, como muito provavelmente será errada, mas compreensivamente recordado como o dia e a forma como deu à Itália o título na Taça Davis.
Talvez não seja assim tão errado. Talvez a Taça Davis tenha mesmo sido ganha naquela tarde, naqueles dois encontros.
Porque como em tempos Rafael Nadal, mas sobretudo Novak Djokovic, Roger Federer e Andy Murray carregaram os respetivos países a caminho da glória eterna, em 2023 também Jannik Sinner levou a sua Itália às costas.
Há dois meses chamavam-lhe traidor e desertor.
Agora é um herói nacional. E é eterno. Aos 22 anos. Com a história a seus pés.