Checa com cobertura

Um triunfo de Ons Jabeur seria o conto de fadas ideal. Mas a Cinderela de Wimbledon foi outra. Porque é brutal assumir o papel de pioneira e carregar o peso das expectativas de todo um país, de um continente e de uma religião.

Por Miguel Seabra, em Wimbledon

Estava escrito nas estrelas — e também no seu corpo tatuado. Marketa Vondrousova sagrou-se campeã de Wimbledon numa das mais surpreendentes vitórias em torneios do Grand Slam de que há memória, sendo mesmo a primeira jogadora não cabeça de série a levantar o Venus Rosewall Dish. Mas não foi ela a grande protagonista do torneio individual feminino de Wimbledon.

A partir do momento em que ficaram definidas as meias-finais de singulares senhoras, o mundo do ténis virou-se para Ons Jabeur — e com naturalidade: trata-se de alguém com uma personalidade jovial, uma tenista habilidosa, e todas as circunstâncias à volta da sua origem contribuíam para uma narrativa muito mais interessante no caso de ela se sagrar vencedora. Sem esquecer o importante facto de ter perdido as duas finais em torneios do Grand Slam que jogou anteriormente, ambas na época transata. Na do Open dos Estados Unidos perdeu sem desonra para a número um mundial Iga Swiatek; dois meses antes, em Wimbledon, esbanjou uma preciosa vantagem para se sagrar campeã no templo da modalidade.

É verdade, Ons Jabeur pareceu ter o título de Wimbledon na mão em 2022. Mas perdeu-se na missão de jogar bonito, de tentar as bolas mais difíceis e de extasiar o público. Porque é isso que lhe serve de combustível. A tunisina necessita de deixar os espetadores de boca aberta, de ouvir exclamações de espanto. Após ganhar o primeiro set, perdeu-se em habilidades e perdeu o foco. Elena Rybakina ganhou fôlego com as borlas, estabilizou o seu jogo ofensivo e ganhou esse confronto em potência.

Kate Middleton entrega o troféu a Marketa Vondrousova

A recordação do que aconteceu há um ano no All England Club é muito importante para entender o que se passou com Ons Jabeur na final deste ano e abre espaço para explicar várias razões que empurraram Marketa Vondrousova para o título — na sequência de uma final orgânica, jogada entre duas intérpretes que pareciam exprimir-se na anacrónica relva do Centre Court com raquetas de madeira. Houve muito toque de bola, muitas jogadas confecionadas com destreza, muitos pontos manufaturados com delicadeza. Só que… nesse estilo que consagrou Ons Jabeur junto dos aficionados e lhe granjeou admiração junto das próprias colegas do circuito, foi a esquerdina de Sokolov a prevalecer. Porque a checa também é habilidosa e porque teve cobertura. A cobertura de gerações de campeões e campeãs do seu país nas últimas seis décadas, cimentada por tantos treinadores de elite, as melhores parceiras de treino e incontáveis sucessos individuais, de pares ou em equipa na Fed Cup/Billie Jean King Cup.

Ons Jabeur até entrou bem, muito disciplinada na sua seleção de pancadas e revelando o pragmatismo que já a ajudara a vencer quatro campeãs de torneios do Grand Slam no percurso até ao derradeiro encontro — e que lhe reforçaram o favoritismo para a final. Bianca Andreescu, igualmente habilidosa. Petra Kvitova, também checa e esquerdina. Elena Rybakyna, numa vingança da final de há um ano. Aryna Sabalenka, que até pareceu ter o encontro na mão. Um percurso imperial que não bastou para chegar ao almejado título.

“À terceira é de vez”, diz o aforismo popular português que é o equivalente ao britânico “third time lucky“. Mas a tunisina não teve sorte nenhuma, ou mesmo mérito para além dos breaks precoces nos dois sets ou dos espetaculares pontos (sobretudo algumas paralelas) que foi conseguindo aqui e ali. E quando as coisas não começaram a correr bem, parecia ter o peso das montanhas do Atlas sobre os ombros. Do Atlas, da Tunísia, de África e mesmo de todo o mundo muçulmano.

Quanto a Marketa Vondrousova, parecia estar nos ombros de todas as grandes jogadoras checas que a precederam. Aquela expressão anglo-saxónica do “standing on the shoulders of giants” que Andre Agassi usou no seu discurso de despedida pode bem aplicar-se à checa, habituada a crescer e a conviver com o sucesso das suas colegas e amigas, na senda do filão do ténis checo. Houve Jaroslav Drobny e Jan Kodes, Ivan Lendl e Petr Korda, mas sobretudo Martina Navratilova e Hana Mandlikova (uma naturalizada americana, a outra australiana), Jana Novotna, Petra Kvitova, Karolina Pliskova (número um sem ter ganho um Slam), Barbara Krejcikova e todas as outras figuras gradas do ténis feminino checo. E por pouco que Karolina Muchova não se juntava ao rol, tendo passado perto do triunfo em Roland Garros.

No ténis (sobretudo feminino), a República Checa é como Portugal no futebol — onde toda a gente nasce a respirar a modalidade, faz parte da cultura nacional.

E, no fim-de-semana decisivo em Wimbledon, o “não há duas sem três” foi para Ons Jabeur… porque Marketa Vondrousova conseguiu o seu “à terceira foi de vez” após os desaires nas finais de Roland Garros em 2019 e dos Jogos Olímpicos em 2021. E a noção de que é brutal desbravar caminho, percorrer trilhos inéditos ou assumir claramente a missão de liderar um processo revolucionário. É mesmo esmagador no plano mental e emocional. Claro que houve exceções anteriormente. Mas talvez nunca antes tenha havido alguém que tivesse querido ganhar um título do Grand Slam para tanta gente.

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