Uma questão de brancura

Num torneio tão conhecido pelos equipamentos brancos, um pouco de cor marcou a diferença numa fase importantíssima para a história do ténis e criou memórias que perdurarão para sempre. Afinal, a tradição já não é o que era? Aqui ficam considerações filosóficas sobre o cromatismo do mais famoso torneio do mundo e alguns dos mais lendários duelos de sempre, para além de um episódio impagável com o jogador que ficou conhecido por Mr PeRFect.

Por Miguel Seabra, em Wimbledon

Após alguma pressão de vários setores, o comité do All England Club decidiu aceitar que as jogadoras pudessem atuar com roupa interior colorida para que eventuais efeitos da menstruação não se tornassem visíveis aos atentos olhares das câmaras (especialmente dos tabloides britânicos). A famosa regra de que os equipamentos devem ser brancos em Wimbledon sofreu assim uma pequena evolução desde que se tornou draconiana no início dos anos 2000 — sim, porque o fundamentalismo alvo em Wimbledon é, ao contrário do que se possa esperar, relativamente recente… e se estivesse vigente nas décadas de 70 e 80, perder-se-ia todo o imaginário associado a alguns dos mais míticos duelos de todos os tempos.

Mas vamos por partes e começando desde o princípio. Obviamente que o branco sempre foi a cor dominante dos equipamentos em Wimbledon e continua a sê-lo muito depois de todos os outros torneios terem adotado a paleta cromática dependente do gosto dos protagonistas ou das opções estéticas dos patrocinadores de vestuário. A opção pelo branco nos primórdios da modalidade teve uma razão de ser muito pertinente e outra de raiz social: por um lado, o branco reflete o espectro completo da luz, o que significa que absorve menos calor nos dias mais quentes, sendo que a humidade do suor provocado pelo calor e pelo esforço também se nota menos no branco do que em roupa de cor (quando não haviam tecidos hi-tech que hoje existem, entenda-se); por outro lado, as manchas de suor eram consideradas impróprias/obscenas nos puritanos tempos vitorianos e a roupa branca era também um símbolo da classe alta do antigamente, porque era mais difícil de manter limpa e os custos da sua preservação estavam apenas ao alcance dos mais abastados. Nos primórdios da modalidade e mesmo durante quase um século, o ténis foi mesmo considerado um desporto elitista…

A partir dos anos 60 começou a notar-se uma maior utilização da cor, facto que se tornou ainda mais evidente naquela que terá sido a mais revolucionária das décadas — a década de 70, marcada pelo experimentalismo associado à introdução de novas matérias sintéticas e pelo modernismo inerente à conquista do espaço. E também pela popularização da televisão a cores, o que tornou os fabricantes de roupa desportiva mais arrojados. Esses tempos entre os anos 70 e 80 foram de domínio das marcas italianas no circuito profissional — como a Fila, Sergio Tacchini, Ellesse, Cerruti, Maggia, Australian (italiana, apesar do nome!) e LaFont. Numa era em que os calções eram curtos e as marcas de vestuário eram exclusivamente marcas de roupa, enquanto as marcas de sapatilhas eram exclusivamente marcas de calçado… sendo exceções a franco-germânica Adidas (que equipava da cabeça aos pés craques como Stan Smith, Ilie Nastase e Tom Okker) e as britânicas Dunlop e Slazenger.

Mas era a Itália que estava na crista da onda, com a eclosão de Bjorn Borg a ser acompanhada pela Fila, que havia criado uma linha (a ‘Settanta’, inspirada nas riscas dos equipamentos de basebol americano) que ficaria para sempre colada à icónica imagem do campeão sueco. Para não falar do elegantíssimo Adriano Panatta, último a italiano a ganhar um título do Grand Slam (Roland Garros, em 1976). A Sergio Tacchini, marca fundada por um antigo tenista transalpino, também entrou com força no mercado e começou por saltar para a ribalta com Jimmy Connors em 1975 para depois se evidenciar nas proezas de outras vedetas americanas como Roscoe Tanner, Vitas Gerulaitis e, sobretudo, John McEnroe.

A final de Wimbledon de 1980, que deu um filme e considero ser o mais relevante encontro de ténis de todos os tempos, ficou decisivamente ‘pintada’ pelos equipamentos Fila de Bjorn Borg e Sergio Tacchini de John McEnroe — desde os coloridos casacos de fato de treino (maioritariamente vermelhos) que envergaram entre a entrada no Centre Court e a pose fotográfica antes do encontro, até aos respetivos conjuntos pólo/calções da linha ‘Settanta’ da Fila (o sueco) e ‘Blow’ da Sergio Tacchini (o americano, que usou exatamente a mesma camisa que o compatriota Roscoe Tanner tinha envergado na também épica final do ano anterior). Ice Borg e Big Mac voltaram a defrontar-se na final de 1981, com Bjorn a manter o mesmo estilo e John a usar a então nova linha ‘Young Line’. A memória visual dessas finais que capturaram o imaginário do planeta está diretamente associada aos seus equipamentos e correspondentes cores/padrões de design.

E depois também havia o calçado. Bjorn Borg usava sapatilhas igualmente italianas da Diadora, que idealizou uma nova sola revolucionária que aderia especialmente à relva e que contribuiu mais para os êxitos do seu patrocinado em Wimbledon (cinco títulos em seis finais consecutivas entre 1976 e 1981) do que se pensa. McEnroe era calçado por uma então jovem marca americana, a Nike.

A regra estabelecida pelo comité do All England Club especificava um dress code ‘predominantemente branco’, mas — como é fácil constatar pela farta documentação fotográfica e videográfica — havia uma importante componente cromática a distinguir claramente os equipamentos dos jogadores e os estilos das diferentes marcas. E mesmo nesses tempos mais coloridos houve algumas manifestações de alvura particularmente interessantes, como a do estiloso Trey Waltke (que se apresentou como um jogador de antanho, de calças e camisa rétro) ou da elegante Anne White (que em 1985 surgiu com um cat suit completamente branco que surpreendeu a organização, sendo depois proibida de o voltar a envergar).

A cor enquanto elemento diferenciador dos equipamentos em Wimbledon continuou a marcar a década de 80 e de 90, destacando-se os padrões gráficos adidas de Stefan Edberg e Ivan Lendl, a camisa Sergio Tacchini que Pat Cash envergou no triunfo de 1987 e consequente subida à Players’ Box  que tantas vezes foi imitada desde então, e a passagem de Boris Becker da Ellesse para a Fila e depois para a Lotto já nos anos 90, marcados pelo domínio de Pete Sampras — que começou por ganhar envergando uma camisa Sergio Tacchini com frisos gregos e prosseguiu vestido de Nike. O próprio Andre Agassi disse recusar jogar em Wimbledon porque o dress code o impedia de usar os calções de ganga e os tons fluorescentes que marcaram o início da sua carreira (embora nesses primeiros tempos também fosse algo alérgico à relva!), reaparecendo em 1991 com uma roupa Nike totalmente branca… mas de corte radical.

O ‘nosso’ Nuno Marques chegou a ter de usar um polo proporcionado pelo torneio porque o que tinha apresentava demasiada cor. Não foi caso único: alguns jogadores relaxavam porque a regra do ‘maioritariamente’ (e não ‘completamente’) deixava alguma margem para dúvida; outros que não tinham patrocinador de roupa faziam de propósito para ganhar da organização camisas de borla para usar e/ou oferecer depois aos amigos. Já na vertente feminina, o uso criterioso da cor também contribuiu muito para a memória visual de Wimbledon — não só com os míticos vestidos confecionados pelo lendário criador britânico Ted Tinling, mas também com equipamentos de marcas ‘regulares’ usados por Billie-Jean King (Maggia), Martina Navratilova (Sergio Tacchini, Puma, Kim, Lotto), Chris Evert (Ellesse) ou Steffi Graf (adidas).

O certo é que, tanto nos homens como nas senhoras e a partir de 2003, a regulamentação da indumentária se tornou muito mais apertada — e do maioritariamente branco se passou ao praticamente branco. Muitas das marcas de equipamentos e calçado até consultam previamente o All England Club para aprovação, mas por vezes há falhas: em 2013, Roger Federer levou uma reprimenda por usar sapatilhas brancas com sola cor de laranja na primeira ronda e teve de mudar de calçado a partir do encontro seguinte.

Roger Federer já tinha então estado no centro de um dos maiores faux pas estilísticos na história de Wimbledon: apareceu em 2007 com umas calças clássicas e, depois de vencer uma intensa final em cinco sets diante do rival Rafael Nadal, vestiu as calças ao contrário para a entrega de prémios… ficando o fecho para trás! O detalhe foi-me então revelado por Carlos Ramos, que tinha arbitrado a final, e pensei em vender a ‘notícia’ a um dos tabloides britânicos, nomeadamente o The Sun, que pagam muito bem por esse tipo de informação. Mas não o fiz, por respeito. O certo é que o The Sun acabaria por destacar, sem o meu contributo mas apenas dois dias depois, essa falha sartorial de Mr PeRFect. E quando, meses mais tarde, confessei o episódio a Roger Federer, o suíço disse-me que eu devia mesmo ter vendido a informação ao The Sun para ganhar algum dinheiro!

Roger Federer perderia a final do ano seguinte para Rafael Nadal, o tal épico duelo de 2008 que terminou já na penumbra e muitos consideraram o melhor encontro de ténis de todos os tempos — ou equipararam à final de 1980 entre Bjorn Borg e John McEnroe. O espanhol ganhou-a com um top sem mangas. E, no meio da avalanche de lexívia que embranqueceu todos os equipamentos dos últimos 20 anos em Wimbledon, esse é o único equipamento de um campeão de Wimbledon que consigo recordar… porque não tinha mangas. De resto, podem-se recordar marcas, mas não propriamente estilos. Completamente asfixiados pela brancura radical imposta pelo fundamentalismo alvo do All England Club.

Os equipamentos dos campeões nas cimeiras do final dos anos 70/início dos anos 80 que ajudaram a popularizar o ténis fazem parte do imaginário da modalidade e contribuem para uma memória muito distinta por parte de todos os que as acompanharam na altura e de todos os que a viram à posteriori, em fotografias ou vídeos. Bjorn Borg, John McEnroe, Pat Cash, Stefan Edberg não poderiam usar hoje em dia os equipamentos que usaram aquando dos seus triunfos na Catedral do Ténis e que fazem parte do seu estatuto. Pat Cash não poderia mesmo usar a bandana axadrezada que se tornou na sua imagem de marca! O site Golden Age Of Tennis especializou-se na reedição/reinterpretação dos inesquecíveis equipamentos dessa era dourada; basta uma rápida vista de olhos para se perceber que, por mais que sejam do agrado dos saudosistas, hoje em dia a emblemática roupa que até figura no Museu do All England Club seria proibida.

A ditadura do branco trouxe consigo um anonimato de estilo que não deixo de lamentar. Sim, nota-se uma corzita aqui e ali, ou um risco invariavelmente verde, roxo, vermelho ou preto. Mas a tradição já não é o que era, apesar de parecer que sempre foi…

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