Falamos de Paris como a cidade do amor em que os sonhos ganham vida e a realidade esbarra numa bolha de romantismo que assegura finais felizes para todas as histórias e Roland-Garros, com o seu charme, instalações renovadas que tornaram o complexo num parque de diversões para pequenos e graúdos onde o ténis não é o único motivo de interesse e em que todos os cantos e recantos refletem a elegância da cidade, costuma ter a mesma fama. Algumas estrelas brilham, outras caem, surgem novas histórias que fazem a delícia da imprensa e os 15 dias em que os melhores do mundo deslizam pela terra batida parisiense assemelham-se ao mundo encantado que a 50km de distância se vive na Disneyland. Este ano, no entanto, foram a geopolítica e outras polémicas a tomar conta da primeira semana. Mesmo se o ténis espetacular esteve lá, mesmo se houve novas histórias felizes para contar.
Por Gaspar Ribeiro Lança, em Roland-Garros
Em retrospetiva, os indícios estavam lá desde que o sorteio foi realizado na quinta-feira anterior ao início dos quadros principais. E o sol e calor atípicos que se sentiram desde o primeiro “Ready? Play” e que prometem manter-se até ao último “Jeu, set et match” só os intensificaram, a geopolítica a assumir protagonismo logo nos primeiros instantes e a dividir-se por várias pastas e capítulos, o público a transcender barreiras questionáveis e as conferências de imprensa a fornecerem ainda mais sumo do que o habitual.
A bielorrussa Aryna Sabalenka e a ucraniana Marta Kostyuk ficaram com encontro marcado numa primeira ronda que, para além de tenisticamente ser das mais interessantes, prometia algo mais por causa das nacionalidades de ambas as protagonistas e que acabou por inaugurar as várias ligações entre os mundos do desporto e da política — muitas delas inevitáveis, mas nem todas — logo nos primeiros dias.
Dentro do court, Sabalenka fez o que lhe competia e venceu por 6-3 e 6-2. Não foi o primeiro “Jeu, set et match” do torneio, mas foi sem dúvida o primeiro a dar que falar porque Kostyuk não cumprimentou a adversária à rede depois de perder.
Apesar de esperado (há muito que a ucraniana afirma que não cumprimentará nem russas, nem bielorrussas e para além de o dizer já o levou a cabo inúmeras vezes), o comportamento de alguma forma apanhou de surpresa o público francês: se durante o encontro gritaram por várias vezes “Allez, Marta”, no final os espetadores protagonizaram um volte-face no ambiente do encontro e assobiaram-ne em uníssono ao ver que Kostyuk foi diretamente à árbitro de cadeira, não esperando por Sabalenka à rede.
Com a Guerra na Ucrânia a ser um dos assuntos mais presentes na atualidade do ténis desde fevereiro de 2022, Kostyuk tem sido uma das jogadoras mais vocais e críticas da invasão levada a cabo pela Rússia e não poupa as colegas de profissão dos dois países, que acusa de superficiais e egoístas por falta de carácter para lhe dirigirem a palavra nos balneários com palavras de conforto e preocupação, mas também de falsas nos momentos em que, como Sabalenka (uma das poucas a fazê-lo), apelam ao fim da guerra sem criticarem especificamente as posições da Rússia e da Bielorrússia.
As declarações da ucraniana surgiram depois das de Sabalenka, que na conferência de antevisão ao torneio afirmara que “a política não devia estar envolvida no desporto” e que depois de ganhar a primeira ronda explicou que “quer se trate dos atletas bielorrussos ou dos atletas russos, ninguém apoia a guerra. Como é que alguém pode apoiar a guerra? De maneira nenhuma. Porque é que temos de dizer isto alto e bom som? É óbvio, é 1 + 1 = 2. É óbvio que não apoiamos a guerra. Se pudéssemos pôr-lhe fim, fá-lo-íamos imediatamente, mas infelizmente isso não depende de nós.”
Dois dias depois, a bielorrussa voltou a vencer e regressou à sala de conferências de imprensa, onde os ânimos aqueceram: um jornalista ucraniano questionou-a sobre “a assinatura de uma carta de apoio ao presidente Aleksandr Lukashenko numa altura em que ele estava a torturar e espancar protestantes nas ruas”, em 2020, e pediu-lhe que condenasse pessoalmente a invasão da Rússia que é apoiada pelo seu país.
As respostas de Sabalenka às duas perguntas foram idênticas: “Não tenho comentários para ti.”
Os minutos vividos nessa troca de palavras levaram-na a abdicar da conferência de imprensa seguinte, após vencer o encontro da terceira ronda, com Sabalenka a afirmar que não se sentiu segura durante a conversa com os jornalistas.
Uma decisão polémica compactuada pela organização do torneio, que não só acedeu ao pedido sem a multar (os regulamentos prevêem sanções severas, entre os 10.000 e os 20.000 euros, para os tenistas que escapem a conferências de imprensa nos torneios do Grand Slam — recorde-se inclusive a ameaça de desqualificação feita a Naomi Osaka em 2021…), como reuniu com secretismo elementos das equipas de comunicação de Roland-Garros e da WTA para uma conversa na qual só uma pessoa lhe fez perguntas — todas sobre o encontro — que depois foram disponibilizadas aos restantes jornalistas acreditados.
Cinco dias depois de Kostyuk, Elena Svitolina repetiu o gesto da compatriota após derrotar Anna Blinkova rumo aos oitavos de final. A ucraniana pareceu hesitar, olhando para a jogadora russa e apontando-lhe o polegar ao mesmo tempo que dizia “good match”, dando a entender que do outro lado estava uma adversária que fora do alcance das câmaras vai além do ‘protocolo’ que por esta altura as respetivas nações esperam (ou exigem…) dos seus jogadores.
O mesmo deverá acontecer no encontro dos oitavos de final com Daria Kasatkina, que nos últimos meses não só assumiu a homossexualidade e criticou os muitos tabus que ainda existem no seu país, a Rússia (onde não vive), como se tornou na primeira tenista russa ou bielorrussa a criticar a invasão à Ucrânia.
Porque, independentemente do que saiba sobre as adversárias com que se cruza, Svitolina tem uma mensagem a passar aos seus compatriotas: “Tudo começou quando o governo ucraniano se reuniu com o governo russo. Eles eram contra os apertos de mão porque não partilham os mesmos valores e obviamente são contra o que a Rússia está a fazer ao nosso país. Eu sou ucraniana e defendo o meu país ao fazer tudo o que me é possível para apoiar, para passar uma boa mensagem aos homens e mulheres que estão na linha da frente a lutar pelo nosso território. Conseguem imaginar o que é que essas pessoas que estão na linha da frente da guerra pensariam ao ver-me a agir como se nada fosse? Represento o meu país e tenho uma voz, por isso demonstro a minha posição em relação a esta guerra e digo que o que o governo e os soldados russos estão a fazer no nosso país é terrível.”
Mas não só deste conflito se fez a história geopolítica desta primeira semana em Roland-Garros. Se ao primeiro dia a falta de cumprimento à rede entre Sabalenka e Kostyuk abriu as discussões em torno da Ucrânia, da Rússia e da Bielorrússia, à segunda jornada Novak Djokovic trouxe para o torneio do Grand Slam francês a guerra entre o Kosovo e a Sérvia ao escrever uma mensagem política na lente da câmara após assinar o primeiro triunfo numa quinzena em que pode fazer história dentro do court (luta por tornar-se no primeiro homem a vencer 23 títulos em ‘Majors’).
“O Kosovo é o coração da Sérvia! Parem com a violência” foi a mensagem escrita pelo ex-número um mundial, que na conferência de imprensa que se seguiu insistiu na reintegração do Kosovo na Sérvia: “O Kosovo é o nosso berço, a nossa fortaleza, o centro das coisas mais importantes para o nosso país.”
“Não sou um político e não tenho qualquer intenção de entrar em debates políticos porque este é um assunto muito sensível”, acrescentou. “É claro que enquanto sérvio me magoa muito ver o que está a acontecer no Kosovo e a forma como o nosso povo foi praticamente expulso de edifícios municipais, por isso isto era o mínimo que eu podia fazer. Como figura pública, mas também como filho de um homem que nasceu no Kosovo sinto uma responsabilidade adicional em expressar o meu apoio às pessoas da Sérvia como um todo.”
Esta não foi a primeira ocasião em que Djokovic se manifestou a favor da reintegração do Kosovo — cuja independência foi proclamada em 2008 e é reconhecida por cerca de 100 países — na Sérvia, mas foi a primeira em que o fez em plena competição.
Com a geopolítica a tomar proporções nunca vistas num torneio do Grand Slam, houve outro assunto igualmente polémico a tomar conta da ordem do dia quando Thiago Seyboth Wild surpreendeu Daniil Medvedev logo na primeira ronda.
O brasileiro brilhou dentro do Court Philippe-Chatrier e assinou uma das melhores exibições da primeira semana, que ganhou contornos muito mediáticos pelas óbvias proporções tenísticas (o russo tinha acabado de ganhar o ATP Masters 1000 de Roma e passou a ser um dos candidatos ao título), mas no momento de maior fama da carreira também teve o passado a assombrá-lo.
“Acho que não é um assunto do qual devamos falar aqui. Não é uma pergunta que devas fazer a ninguém. E não acho que devas ser tu a decidir se este é ou não um local no qual se deve falar disso”. Esta foi a única resposta curta e fria do tenista brasileiro depois de eliminar o número dois mundial e surgiu na sequência da pergunta que lhe foi colocada sobre as acusações de violência doméstica que foram denunciadas pelo Ministério Público do Rio de Janeiro.
O caso do brasileiro — a decorrer há mais de um ano e ainda sem desfecho — tinha passado ao lado de grande parte da imprensa internacional por causa das diferenças linguísticas que dificultam a investigação, mas não do alemão Jannik Schneider, que aproveitou a conferência de imprensa para tentar “noticiar de forma justa e completa” todo o contexto de Wild.
Não só o pedido lhe foi negado pelo jogador, como lhe mereceu uma ameaça do agente de Wild, que tentou fotografar-lhe a credencial de jornalista. Dois dias depois, esse mesmo agente (de uma reputada empresa, a Octagon) aproveitou o facto de nenhum jornalista ter afetuado um pedido de conferência de imprensa com o brasileiro após o seu encontro da segunda ronda para evitar uma nova ida do tenista à sala de conferências de imprensa e o mesmo aconteceu após a derrota na terceira eliminatória.
Ao mesmo tempo que a imprensa sentia dificuldades em acompanhar todos os incidentes extra-ténis que marcavam os primeiros dias, o público francês assistia a uma quase inédita debandada (2021 e 2023 são as únicas edições desde o início da Era Open, em 1968, em que Roland-Garros não tem qualquer jogador francês na terceira ronda de ambos os quadros de singulares) dos seus favoritos.
E o desespero por uma última história levou 10.000 entusiastas a excederem vários limites durante o duelo entre Arthur Rinderknech e Taylor Fritz, que começou com esperança para os franceses e terminou com uma assobiadela viral ao norte-americano após este eliminar o último representante da casa — não pelo resultado, mas pela forma como o número oito mundial mandou calar todo o público quando finalmente soltou a frustração depois de resistir durante um duelo em que teve de suportar assobiadelas e gritos em vários momentos impróprios.
Depois dos assobios a Kostyuk pela ausência do cumprimento à rede e das constantes vaias a Djokovic numa relação de amor-ódio que se prolonga há vários anos, o comportamento do público francês acendeu a discussão.
Conhecidos pela paixão com que abraçam a experiência em Roland-Garros, os gauleses receberam críticas dos quatro cantos do mundo, mas sobretudo dos norte-americanos — que são conhecidos por se excederem regularmente com o álcool no US Open e perturbarem o decorrer da ação em contextos bem mais aleatórios.
E assim os cânticos d’A Marselhesa que tanto correram o mundo, a onda mexicana que animou o recinto e a festa que se fez nos mais improváveis dos courts passaram para segundo plano, a vilania de um lusco-fusco misturado com desespero a impôr-se a tudo o resto.
Esta foi mesmo uma semana quente, em todos os sentidos e mais alguns.