Uma vitória portuguesa, a Marselhesa e até alguns assobios no arranque de Roland-Garros

Roland-Garros o único dos quatro torneios do Grand Slam que divide a primeira ronda por três dias (e não dois), Mas nem por isso faltou emoção na jornada que assinalou o arranque da quinzena de quadros principais na capital francesa. Houve, claro, uma vitória portuguesa, o destaque principal de um primeiro dia que começou com assobios num dos duelos mais aguardados e terminou com a Marselhesa a ser entoada em uníssono num lusco-fusco de festa.

Por Gaspar Ribeiro Lança, em Roland-Garros

Em ação no quadro principal pela segunda vez na carreira, mas primeira com entrada direta, Nuno Borges repetiu a façanha do último US Open e inscreveu o nome na segunda ronda. O feito é, por si só, assinalável e são os números que o atestam — aos 26 anos, o maiato tornou-se apenas no quinto português (e quarto homem) a celebrar uma vitória na elite de Roland-Garros.

São mares raramente navegados por representantes lusos e ainda menos se considerarmos que esta foi a primeira vitória de sempre de um tenista português num tie-break da quinta partida disputado a melhor de 10 pontos ou seja até aos 10 e não até aos sete como é habitual.

As 3h57 que passou no Court 13 deixaram bem patente a capacidade de sofrimento e superação do atual número um nacional. Esteve longe de ser o melhor encontro da carreira de Nuno Borges. Nem no que diz respeito aos torneios do Grand Slam, onde a sua história ainda é curta (mas já tão sorridente). Foi, acima de tudo uma demonstração de força psicológica.

Porque ao longo das 3h57 Nuno Borges teve de lidar com uma das pancadas mais perigosas da história do ténis. São os números que o dizem. John Isner é o recordista de ases (14.260) e às primeiras bolas que não chegam a tocar na raqueta do adversário junta muitas outras que, tocando, não voltam a passar a rede. O serviço-canhão do ‘gigante’ destabiliza qualquer jogador e mesmo quando não está em ação é um fator de desequilíbrio, porque a sua eficácia é tal que exerce pressão em quem serve — impedidos de ‘cheirar’ o break na maior parte das ocasiões, os adversários tremem na iminência de deixarem escapar um dos próprios jogos de serviço.

Borges referiu isso mesmo na conversa de cerca de 15 minutos que teve após o encontro. Uma conversa como tantas outras que já deu, indiferente à ocasião e à pressa que caracteriza os gabinetes de imprensa de um torneio da dimensão Roland-Garros, com a paciência para escutar e responder ao que lhe foi sendo perguntado.

Superar um adversário que conhece tão bem das várias horas que já passou em frente à televisão — e que, é importante não esquecer, é um dos jogadores em atividade com mais vitórias no circuito masculino — e que dispõe de uma das maiores armas no ténis moderno não é fácil. O resultado comprova-o, mesmo se o triunfo podia ter sido (bem) mais dilatado.

E assim, exatamente 10 anos depois de João Sousa, um tenista português voltou a vencer pela primeira vez no quadro principal de Roland-Garros.

Nuno Borges juntou-se a mais um grupo restrito e mais história poderá fazer na quarta-feira, quando voltar à ação para disputar a segunda ronda (ou contra Bernabé Zapata Miralles, ou contra Diego Schwartzman), mas aqui ainda falamos deste domingo, a primeira jornada.

Com o sol a brindar Paris, os parisienses e seu visitantes com um dia de verão (mais de 25 graus a dada altura e total ausência de vento), quente foi, também, o primeiro encontro no palco principal do torneio.

Aryna Sabalenka e Marta Kostyuk mediram forças numa primeira ronda que já se esperava faiscante por causa das nacionalidades das duas jogadoras e se no ténis jogado a ação arrefeceu após a primeira meia-hora (que expôs o ténis que ambas são capazes de oferecer), o final foi marcado pelo lado político do frente a frenta. Como era esperado, o frente a frente terminou sem o habitual cumprimento à rede — tem sido essa a opção da ucraniana desde a invasão levada a cabo pela Rússia. E a decisão de Kostyuk levou o público francês (que no final já quase preenchia totalmente o Court Philippe-Chatrier) a assobiá-la depois de a ter apoiado durante o encontro.

A despedida sob um manto de assobios surpreendeu a jovem de Kiev, que sem papas na língua — como é seu apanágio — lamentou a forma como foi tratada pelo público francês. E ainda deu uma biqueirada na bielorrussa, acusando-a de não usar a sua plataforma nem de falar por si própria nas vagas condenações que fez à situação política que envolve os dois países.

Sensivelmente ao mesmo tempo que Kostyuk expressou o seu desagrado, outra jogadora cedeu às emoções na sala de imprensa: Zhang Shuai, que foi arrasada por Magdalena Frech (6-1 e 6-1) na primeiro encontro a ficar concluído, desabou em lágrimas e não conseguiu falar com a imprensa do seu país. Os contornos da situação da jogadora de 34 anos (atualmente na 31.ª posição do ranking) não são claros, sabendo-se apenas que não viaja até à China há cerca de três anos e que entrou em litígio com a federação de ténis do país entretanto, sendo inclusive afastada dos Jogos Olímpicos de Tóquio…

Apesar das primeiras jornadas em Paris serem menos condensadas do que as de Melbourne, Londres e Nova Iorque, o primeiro dia teve ténis e histórias para todos os gostos e até A Marselhesa.

Foi já a fechar a jornada, no embutido Court 14, que Lucas Pouille levou o público da casa à loucura com um triunfo repetido: é que três dias depois de ter afastado Jurij Rodionov com uma reviravolta em três para ‘furar’ o qualifying, o francês de 29 anos voltou a superar o austríaco em três partidas — mas desta vez diretas sem ceder qualquer set, pois o quadro principal é jogado à melhor de cinco — e apurou-se para a segunda ronda.

Foi a primeira vitória do gaulês em quadros principais de torneios do Grand Slam desde o US Open de 2019 e surgiu menos de um ano após bater no fundo por causa de uma depressão que o levou a “beber sozinho” e dormir “uma hora por dia”.

Ver uma fotografia da filha no próprio telemóvel salvou-o e a emoção apoderou-se dele após ouvir o tradicional “jeu, set et match” perante milhares de espetadores — os mesmos que, em uníssono, entoaram La Marseillaise num momento que descreve na perfeição o espírito de Roland-Garros.

Pelo meio muito ficou para contar porque este foi mesmo um primeiro dia em cheio — o encontro de Nuno Borges foi apenas um dos cinco do quadro masculino que só foram resolvidos na quinta partida e ao longo das 12 horas de ténis caíram cinco cabeças de série, com muitos outros (Stefanos Tsitsipas incluído) a precisarem de horas extra para sobreviverem.

Num reino sem rei onde a inevitabilidade do tempo nos traz de volta à realidade uma coisa é certa: Roland-Garros está vivo e bem vivo. E este é só o início.

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