Com o “coração ainda na arbitragem de cadeira”, Carlos Ramos lembra que “há um tempo para tudo”

Quatro dias depois de ter vivido um dos dias mais especiais da sua vida ao dar por concluída a carreira de árbitro de cadeira, Carlos Ramos foi na manhã desta quarta-feira alvo de uma homenagem promovida pela Federação Portuguesa de Ténis. Fechado um capítulo, outro continua ainda a ser escrito no mesmo ramo da arbitragem profissional: o agora ex-árbitro de cadeira começou por desvendar que vai continuar a assumir funções de juiz árbitro.

O lisboeta de 52 anos, que desceu pela última vez da cadeira ao proferir o ‘game, set and match’ que deu Casper Ruud como campeão do Millennium Estoril Open, partilhou com a imprensa presente um extenso e detalhado testemunho que comprimiu mais de 30 anos de um percurso que elevou as cores nacionais aos mais conceituados palcos da modalidade. Ainda com um domingo de emoções intensas bem na memória, relatou que “só soube no sábado à noite” que tinha sido o árbitro designado para a final – ainda antes de ter expressado o desejo de ali encerrar o capítulo.

“As duas pessoas que podiam decidir quem fazia a final do Millennium Estoril Open eram o Carlos Sanches e o Rogério Santos, e eles souberam da minha decisão no domingo de manhã. Nessa altura pedi se a minha mãe e irmã podiam entrar no Estádio”, começou por evocar. E não escondeu a surpresa à cerimónia da qual foi alvo, que aconteceu ainda antes dos protagonistas subirem ao palco: “Nada daquilo foi organizado. Jamais um árbitro falou numa cerimónia de entrega de prémios de um torneio, só soube daquilo naquele momento. Fui muito acarinhado e foi incrível. Não esperava aquela reação do público, a aplaudir a carreira de um árbitro.”

A viver os primeiros dias de uma nova vida, Carlos Ramos assegurou que o futuro passa, para já, por se manter ligado ao ténis. Com o “coração na arbitragem de cadeira”, aclarou que essa página ficou fechada no domingo passado e que se segue outro desafio que já bem conhece: “No Estoril subi para a cadeira de árbitro pela última vez, mas continuo na arbitragem. O meu coração não está na juiz arbitragem, sempre esteve na arbitragem de cadeira, mesmo que goste muito de ser juiz árbitro. Acho que tenho qualidades para ser um bom juiz árbitro, já o sou há mais de 15 anos. Vou continuar como juiz árbitro.”

Apontando o seu “instinto” como motor para a decisão de virar a página, confessou que há muito que equacionava o fim de carreira enquanto árbitro de cadeira. Ciente de que com o avançar da idade as suas faculdades são já outras, ressaltou: “Há um tempo para tudo, já há uns dez anos que pensava no dia em que ia deixar de arbitrar e era fundamental deixar quando ainda estivesse no melhor nível. Aos 52 anos, as coisas estão mais frágeis, com a idade ganhamos muito mas perdemos outras coisas. No Estoril foi a primeira vez que me viram a arbitrar de óculos, a minha visão baixou e tive de assumir isso. Sentia-me ainda com confiança, mas as capacidades começaram a baixar, é normal. Senti que era o momento certo e quis decidir antes que me fosse imposto.”

Já determinado a fazer a despedida nesta temporada, advertiu que inicialmente apontara Paris como derradeiro palco. Mas foi na chegada ao Millennium Estoril Open, no domingo de qualifying, que os astros se alinharam: “Tinha previsto acabar em Roland-Garros, mas no Estoril percebi que era o momento para parar. Tive a sorte de o fazer numa final de singulares, sem a certeza de que o iria fazer. Achei que devia fechar o círculo lá, comecei em Lisboa e acabo no Estoril. Foi o momento ideal para o fazer, senti-o mesmo e estou muito feliz por ter tomado essa decisão. Os planetas alinharam-se para mim naquele dia e reconfortou-me muito na minha decisão. Estou feliz por ter seguido o meu instinto.”

Sempre com a figura de Jorge Dias bem presente no seu discurso, Carlos Ramos recordou que foi ainda na adolescência que sentiu o chamamento para a arbitragem, numa fase propícia para o fomento em Portugal: “O Jorge Dias foi a primeira pessoa que me fez sonhar em ser árbitro, acho que ninguém em criança sonha em ser árbitro. Como jogador não havia grande esperança para mim, mas havia as condições ideais para os árbitros terem oportunidades em Portugal. Empolguei-me muito com a arbitragem e o resto é história.”

Com o Court Central do Complexo de Ténis do Jamor a ‘sorrir-lhe’ do lado direito, transmitiu que foi aí que o sonho começou a ganhar forma: “Uma das primeiras grandes memórias foi aqui no Centralito numa Taça Davis com a Holanda, nos finais dos anos 80. Comecei a fazer as primeiras viagens, estreei-me em Grand Slams no US Open, em 1991, e depois disso muitos torneios ficaram-me na memória.”

Destinado a seguir as pisadas daquele que é o seu maior ídolo da arbitragem, Carlos Ramos lembrou o quão restritos eram os torneios do Grand Slam. Arbitrar uma final era algo inacessível a estrangeiros, mas foi um português a desbravar esses ‘mares nunca dantes navegados’. Anos mais tarde, igual privilégio bateu-lhe à porta e confessou que é essa a sua recordação mais especial: “Na altura um árbitro estrangeiro não tinha nenhuma possibilidade de fazer uma final do Grand Slam, o Jorge Dias foi o primeiro a fazê-lo em Wimbledon, que estava fechado a todos os estrangeiros e eu fui o primeiro em Roland-Garros. Em 2005 estreei-me no Australian Open, no centenário do torneio, e foi o momento que mais me marcou na carreira de árbitro. Durante os primeiros 20 minutos nem sabia o que estava a acontecer e depois entrei na zona, não podia falhar e foi o que aconteceu. A minha primeira final em Wimbledon foi em 2007, Federer contra Nadal, foi inacreditável.”

Regido pelo código de conduta, a imparcialidade sempre o levou a não fazer distinções entre os atletas com quem se cruzou. E certificou, ainda, que qualquer profissional merece igual consideração: “Amo o ténis, amo a arbitragem e amo os jogadores. Tenho imensa admiração pelos jogadores e muito respeito, sendo o 500 do mundo ou o número um, a minha consideração é sempre a mesma.”

O episódio com Serena Williams, na final do US Open de 2018, foi inevitavelmente trazido para cima da mesa. E porque está ainda vinculado com o regulamento da arbitragem, Carlos Ramos lamentou que ainda não se possa pronunciar acerca de uma das polémicas que mais abalou o passado recente: “A ATP tem uma regra muito restrita, os árbitros não têm o direito de falar à imprensa. Trabalhei para a ATP até domingo, depois disso verifiquei com a ITF se podia dar entrevistas em Portugal. Gostaria que no sistema de arbitragem pudéssemos falar mais de arbitragem, quando temos e quando não temos razão. Infelizmente a realidade não é essa e os árbitros não têm o direito de se pronunciarem.”

A função de juiz árbitro impõe-lhe o silêncio, não só daquele episódio em concreto: “Não posso falar do jogo da Serena Williams, não posso falar nem de jogadores nem de eventos. Ainda sou juiz árbitro e não tenho o direito de falar, não teria o mínimo problema em falar, dizer que tive razão ou que não tive, mas não posso. Não é algo com o qual tenha dificuldade em falar, mas não posso.”

Contudo, acentuando que o código o impede de mencionar à imprensa qualquer jogador ou evento em específico, apontou John McEnroe como “uma das razões pelas quais me tornei árbitro”. Para Carlos Ramos, constituía um “desafio muito interessante” que agiu para o desenvolvimento da arbitragem através da sua irreverência: “Era um dos jogadores complicados para os árbitros. Graças aos quais, a arbitragem profissional surgiu, porque se todos os jogadores fossem fáceis não haveria árbitros profissionais. Obrigaram-nos a por a fasquia muito mais alta, tivemos de melhorar o nível de arbitragem. Nos meus 35 anos de arbitragem senti uma evolução enorme porque os jogadores nos desafiam.”

Questionado sobre o papel que o silêncio tem no ténis, acredita que tudo se trata de uma questão de tradição e está convicto de que o futuro poderá acarretar uma transformação, ainda que espere que não perca o seu legado: “O silêncio seria também importante no futebol se isso fizesse parte da tradição do futebol. No ténis não é assim, a realidade é diferente, mas há 20 anos atrás fazia-se muito menos barulho. O ténis está a evoluir, mas dentro dos seus limites aceitáveis. Se mudar, os jogadores vão-se habituar. Acho que o ténis tem tudo a ganhar em ficar como ele é, em respeitar a tradição em vez de querer ficar como os outros desportos. Em Wimbledon há muita tradição e é o torneio com mais sucesso.”

Por último, abordando o desafio que os avanços tecnológicos têm trazido para o ramo da arbitragem, explicou como os novos árbitros podem contornar a extinção cada vez mais evidente dos juizes de linha nos principais palcos: “O árbitro adapta-se. Os meus primeiros grandes jogos foi como juiz de linha, no US Open. Os árbitros de cadeira com potencial começavam como juizes de linha. A arbitragem eletrónica permitia ter juizes de linha, mas agora por vezes há um grupo mínimo de juizes de linha. A arbitragem está-se a adaptar, mas durante muitos anos era como juiz de linha que se começava. O que é importante é o ténis, todos queremos que seja o melhor para o ténis.”

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