Quando Carlos Alcaraz esteve em Portugal pela primeira vez, o impacto da bola na encordoação da raqueta e o deslizar das sapatilhas na terra batida do Estoril, primeiro, e do Jamor, depois, sobrepunham-se aos pouquíssimos aplausos que recebia. Viviam-se tempos de pandemia e as restrições relacionadas com a covid-19 impediam a presença de público nas bancadas. Mas já nessa altura o espanhol era acompanhado com um grau de entusiasmo raro e unânime e até foi no nosso país que garantiu a estreia no top 100 mundial. Agora, um ano e quatro meses depois, tem o mundo a seus pés. E o facto de esta ascensão meteórica não surpreender ninguém é porventura o maior elogio que se lhe pode fazer.
O título no US Open e a subida ao primeiro lugar do ranking mundial são inéditos e dão-lhe um lugar na história sem precedentes. Afinal, é o mais novo líder de sempre no circuito masculino.
Mas a estrela já tinha nascido há muito tempo.
No mês de maio, em Roland-Garros, escrevi para o Expresso sobre “uma sensação de render geracional inevitável” e classifiquei Carlos Alcaraz como “um dos sérios candidatos ao trono”. Não estava a cometer grandes riscos, antes a constatar o que já era dado como praticamente adquirido pela generalidade da audiência.
O mesmo pode ser dito de qualquer exercício descritivo feito durante 2022, ano de explosão para o qual já entrou como um dos favoritos. Em abono da verdade, e aqui recupero a ideia de que é este o maior elogio que se lhe pode fazer, já em 2021 as previsões em relação a Carlos Alcaraz eram sustentadas sobretudo em factos à vista de todos.
Porque também aí a estrela já tinha nascido.
Natural de Múrcia, onde nasceu a 5 de maio de 2003, Carlos Alcaraz evoluiu no circuito de mãos dadas com recordes de precocidade. E mal passou a fazer parte da elite já tinha a etiqueta de sucessor de Roger Federer, Rafael Nadal e Novak Djokovic, não só por todo o talento que desde cedo espalhou, mas também porque — e aqui poderão dizer-me que estarei a fazer o papel de advogado do diabo — o inevitável render geracional acompanhou a sua chegada ao circuito.
Aos 19 anos e 4 meses, já ultrapassou a passos largos nomes como os de Alexander Zverev (há vários anos entre os melhores, mas com os resultados em Majors a ficarem muito aquem dos restantes no circuito) e Stefanos Tsitsipas (também ele já com várias pretações notáveis, mas também ele sem um período de domínio como o do espanhol) e até Dominic Thiem, que foi o primeiro dos possíveis sucessores a conquistar um Major, no US Open de 2020, mas que desde aí tem sido travado por lesões.
Permitam-me que recupere aqui dois parágrafos do texto que escrevi em Paris após a sua estreia vitoriosa no Court Philippe-Chatrier — Ici c’est Paris et lui c’est Carlitos.
Aqueles que o viram deslizar na terra batida portuguesa em maio de 2021, quando a pandemia ainda obrigava a que os torneios decorressem sem público, encontram na atual versão de Carlos Alcaraz muitos dos pormenores que revelou nessa passagem pelo Jamor, bem como semanas antes no Millennium Estoril Open. Era menos musculado, mas já revelava uma estrutura física acima da média.
Movimentava-se com aparente e desconcertante facilidade, qual adolescente recém-chegado ao circuito. Tinha nos olhos a ambição que faz crer, não querer, e que acompanhava com um discurso eloquente (na altura sobretudo em espanhol, nos dias de hoje já bastante à vontade em inglês) e livre de arrogância. E revelava uma capacidade explosiva que tão potenciada tem sido por Juan Carlos Ferrero, o “Mosquito” (alcunha com que ficou conhecido o ex-número um mundial) que o agarrou com tenra idade e desde logo soube balizar as expetativas e o potencial, inimigos de tantos os que, como ele, foram apontados como sucessores de Federer, Nadal e Djokovic.
Como sempre, a receita para o sucesso tem vários ingredientes. E um deles é inevitavelmente a relação entre Carlos Alcaraz e o ex-número um mundial Juan Carlos Ferrero.
A relação treinador-jogador começou em agosto de 2018, quando o mais novo dos dois espanhóis tinha apenas 15 anos, mas o primeiro contacto surgiu em 2015 ou 2016: “Vi-o pela primeira vez quando ele tinha 12 ou 13 anos, quando veio à academia para treinar um dia. Era muito pequeno, mas dava para ver porque é que toda a gente estava a falar dele. Já tinha tudo o que tem hoje, mas numa versão pequena. Em contexto oficial vi-o pela primeira vez quando ele tinha 14 anos e conquistou o primeiro ponto ATP. Vi esse encontro, em que ele fez um primeiro set muito bom e no segundo cometeu uma grande trapalhada. Mas já dava para ver que aos 14 anos, e sem físico, conseguia competir com rivais muito duros. Mas nessa altura ainda não havia nenhum tipo de contacto para trabalharmos juntos“, explicou Ferrero numa entrevista recente.
Foi nesta mesma entrevista que “Mosquito” descreveu o pupilo como “um fio de esparguete” no momento em que chegou à sua academia, a Juan Carlos Ferrero – Equelite Sport Academy. “Era muito fino. Obviamente vimos que tinha uma mão muito boa e pernas muito rápidas, mas não tinha músculos nenhuns. Nem nas costas, nem nas pernas, nada. Tivemos de trabalhar muito, mas é óbvio que vimos algo muito especial nele.”
Quatro anos depois, Juan Carlos Ferrero sabe que tem nas mãos um diamante por polir. Tal como sabe que a progressão é faseada, o delírio perigoso e o sucesso sinónimo de muito trabalho.
Se para o grande público não foi surpreendente ver Alcaraz conquistar um torneio do Grand Slam já em 2022, muito menos o foi para Ferrero. Afinal, e como o próprio recordou numa das entrevistas pós-sucesso em Nova Iorque, trabalham juntos todos os dias. E é esse trabalho diário que o faz acreditar que o jovem de 19 anos ainda só atingiu 60% do potencial — uma observação inevitavelmente aliada à expetativa de mais títulos, mas que o espanhol de 43 anos tenta balizar sempre que possível.
“É normal que as pessoas queiram ter alguém em foco para o futuro depois do Rafa e dos outros bons tenistas espanhóis, mas não podemos cair no erro de comparar o que o Carlos pode ser ao que é o Nadal” foi uma das frases mais marcantes da entrevista que deu no Oeiras Open 125 que catapultou Alcaraz para o top 100 mundial, em maio de 2021, e é uma ideia que repete desde então, apesar de não esconder a ambição de fazer dele um dos melhores jogadores da história.
E a história está pronta para Carlos Alcaraz, o menino de Múrcia que é o segundo de quatro filhos de Virginia e Carlos, o primeiro responsável pela nova estrela do ténis.
Diretor do Real Sociedad Club de Campo d’El Palmar, na região de Múrcia, foi lá que levou o filho a bater as primeiras bolas ainda os primeiros passos eram uma memória recente. A experiência profissional do pai foi curta e a do irmão mais velho, Álvaro, também, mas ainda assim suficiente para o motivar a seguir-lhe os passos. Aos sete anos participou no primeiro torneio, aos 10 já passava semanas sem ir à escola para competir pelo país fora e aos 14 chegou a primeira proposta da Federação Espanhola de Ténis para o integrar o centro de treinos de Barcelona, a cerca de 600 quilómetros.
Esse convite foi recusado, mas o seguinte, feito por Ferrero um ano depois, recebeu resposta diferente. A reputação do compatriota e da academia que criou, a proximidade da sua cidade natal e a possibilidade de regressar regularmente a Múrcia, para onde continua a viajar sempre que tem um dia livre, terão sido fundamentais para a decisão.
Quem o conhece diz que não mudou com a fama. E que, para além dos gostos que preenchem qualquer questionário generalista (Will Smith é o seu ator favorito, Rocky o filme predileto, Eye of the Tiger a música de que mais gosta, sushi e massa as refeições que prefere e Real Madrid o clube que o faz vibrar), continua a recorrer ao xadrez que o avô lhe ensinou para trabalhar a concentração e a uma sesta de 20 minutos antes de cada encontro.
O futuro é agora e já estamos na era de Carlos Alcaraz. O rapaz de tudo isto e muito mais, como a fórmula cabeza, corazón y cojones que partilhou através de emojis no Twitter a poucas horas de entrar no Artur Ashe Stadium para disputar a final do US Open.