A guerra, a solidariedade e o regresso ao norte num play-off memorável pelas mais distintas razões.
Por Miguel Seabra, na Maia
Até há cerca de 20 anos atrás, antes de a seleção nacional de futebol começar a assinar consistentemente resultados de destaque e Cristiano Ronaldo emergir como ídolo mundial, acreditava-se que uma das razões para a falta de sucesso do desporto português tinha a ver com o facto de… Portugal não ter passado pela provação da guerra, como aconteceu com a esmagadora maioria dos países europeus nos dois grandes conflitos mundiais do século XX. É uma teoria algo arriscada e definitivamente controversa, mas é possível reconhecer que as exigências da guerra têm o condão de unificar e endurecer um povo, para além da reconstrução de um país exigir também muita disciplina e pragmatismo — tudo caraterísticas inerentes ao sucesso na alta competição. De qualquer das formas, e apesar de um batalhão dizimado nas Ardenas na primeira Guerra Mundial e das atrocidades da chamada guerra colonial em África, Portugal efetivamente nunca teve de enfrentar a devastação em massa provocada pela barbárie militar. No passado fim-de-semana, e em contexto desportivo, a seleção lusa da Taça Davis mediu forças com um país que conhece demasiado bem essa realidade.
A Polónia é, hoje em dia, o país que mais tem ajudado a vizinha Ucrânia após a eclosão da Terceira Guerra Mundial (senão o é ainda militarmente, seguramente que já o é no plano económico). Já abriu os braços a cerca de um milhão de refugiados — o que se percebe perfeitamente: não só porque “a Ucrânia é um país irmão”, como me disse o capitão polaco Mariusz Fyrstenberg, mas também por um passado não demasiado distante de mortíferas invasões alemãs e soviéticas bem patente no museu do holocausto que já tive a oportunidade de visitar em Varsóvia. E todos os elementos da seleção polaca presentes na Maia ostentaram uma pequena bandeira ucraniana no seu fato de treino. “Vocês deviam ter feito o mesmo”, disse-me um jornalista polaco a quem enviei uma fotografia a ilustrar essa demonstração de solidariedade.
A Polónia é o país que mais de perto tem vivido as incidências bélicas entre Rússia e Ucrânia, lá longe, na outra ponta da Europa. Nós estamos do lado de cá, na ponta ocidental do continente europeu que mais longe está de qualquer catástrofe nuclear daí resultante. Mas, longe ou perto, o que está a acontecer é uma desgraça que afeta o mundo inteiro e que poderá tornar-se muito pior. No meio deste contexto, entre o ténis praticado no Complexo de Ténis da Maia e a avalanche noticiosa que nos ia chegando do leste europeu, lá tivemos a alegria de uma importante vitória da seleção nacional. Os Heróis do Mar bateram a seleção daqueles que têm sido os Heróis da Solidariedade — e a Polónia, mesmo sem o seu número um e top 10 mundial Hubert Hurcacz, não é uma formação tão acessível como isso.
Pronúncia do Norte
Sim, foi uma vitória por 4-0 (até foi dispensada a realização do quinto encontro), mas todos os três embates que deram o triunfo antecipado de Portugal foram decididos na terceira partida. João Sousa regressou às boas exibições em terra barida face a Kacper Zuk (6-3, 2-6, 6-4); Nuno Borges estreou-se como titular ao operar uma grande reviravolta diante de Kamil Majchrzak perante o público da sua cidade natal (3-6, 6-4, 6-3); e tanto Nuno Borges como Francisco Cabral deram indicações de serem uma dupla de futuro contra Szymon Walkow e Jan Zielinski (3-6, 6-3, 6-4). Gastão Elias, para cumprir o calendário mínimo exigido e fazendo jus ao troféu comemorativo da sua longevidade ao serviço da Taça Davis recebido pouco antes, lá reforçou o seu currículo na prova com um fácil sucesso sobre Jan Zielinski (6-1, 6-3). Os números finais penderam claramente para o lado português, mas o reforçar do espírito de grupo, o ganhar de experiência por parte dos novatos Nuno Borges e Francisco Cabral, a comunhão com o público, o entusiasmo nas bancadas e o regresso ao norte do país também foram tanto ou mais importantes.
O regresso ao norte deu-se seis anos depois da frustrante eliminatória face à Áustria de Dominic Thiem em Guimarães e sete anos depois de duas bem sucedidas rondas em Viana do Castelo — e doze anos depois do anterior compromisso no Complexo Municipal de Ténis da Maia onde, em 2001, a formação lusa conseguiu uma das melhores vitórias do seu historial face à… Ucrânia, então liderada pelo ex-top 3 mundial e vice-campeão de Roland Garros Andrei Medvedev. Uma épica vitória selada no quinto encontro, perante um ambiente efervescente e com orgulhosa pronúncia nortenha nas bancadas. Biba Portugal!