Pela primeira vez em 11 meses, perdemos o reflexo imediato de fazer comparações alusivas à adesão/ausência de público num evento porque a situação favorável permite ao Australian Open receber quase 20.000 espetadores por dia. Mas há outro tipo de ausência que à primeira vista poderá passar despercebido e que pode ter consequências inimagináveis na evolução da modalidade.
O Australian Open tornou-se no primeiro torneio do Grand Slam a abolir por completo a presença dos juízes de linha em todos os courts, depois do US Open o ter feito nos campos secundários em setembro de 2020. No lugar dos nove juízes de linha (sete nos estádios mais pequenos) estão câmaras de alta definição — é o hawk-eye live, uma evolução do sistema eletrónico utilizado desde 2006 e que agora chama automaticamente todas as bolas do encontro.
Tal como em Nova Iorque, também em Melbourne a decisão foi justificada pela necessidade de “arejar” os courts e os recintos, que habitualmente recebem cerca de 300 juízes de linha ao longo das duas quinzenas. Mas o Australian Open tem a “sorte” de viver uma situação bem diferente, que enfraquece o argumento. Porque: a) a situação no país permite aos cidadãos circularem livremente e participarem em eventos de larga escala, incluindo este — a Rod Laver Arena pode receber quase 18.000 espetadores por dia e o uso de máscara em espaços fechados só recentemente voltou a ser obrigatório, não existindo restrições adicionais como redução da lotação; b) tal como os jogadores, também os juízes de linha/árbitros de cadeira são testados com regularidade; c) no caso particular do Australian Open, porque a situação pandémica assim o permite, o court continua repleto de atores secundários como apanha-bolas, fotógrafos nas laterais e nos fundos e seguranças, etc.
Roland-Garros aconteceu excecionalmente em outubro de 2020 e ao contrário do US Open rejeitou ceder ainda mais à tecnologia. Em Paris, a tradição é sagrada e nem o serviço básico do hawk-eye agrada aos responsáveis, que reiteram a confiança nas equipas de arbitragem.
Mas o circuito não se faz só dos torneios do Grand Slam. Os Masters 1000 de piso rápido previstos para 2021 (Miami, Toronto, Cincinnati, Paris, Xangai e Indian Wells, se for reagendado) seguirão a tendência do hawk-eye live, que foi testado pela primeira vez no NextGen Finals de Milão, em 2018 (e que no final do último ano também foi adotado pelo ATP Finals).
Recentemente começou a circular nas redes sociais uma fotografia das meias-finais de Wimbledon 2004. Em primeiro plano, uma jovem Serena Williams em êxtase celebra, com os dois braços no ar, o apuramento para a final. Em segundo plano, uma juíz de linha utiliza o braço direito para assinalar como fora a derradeira bola batida por Amélie Mauresmo.
Dezassete anos depois, a juíz de linha em questão é uma das árbitros de cadeira mais credenciadas do ténis: Eva Asderaki já arbitrou as finais femininas de todos os torneios do Grand Slam e em 2015 tornou-se na primeira mulher a arbitrar a final masculina do US Open, entre vários outros eventos e encontros de alto calibre.
Tudo isto para afirmar o óbvio — mas que estranhamente precisa de ser recordado: nenhum árbitro de cadeira chega ao grupo de elite de um dia para o outro.
O percurso é, na verdade, semelhante ao de um tenista. As primeiras experiências acontecem nos torneios mais pequenos e, no início, enquanto juízes de linha. É nesses primeiros dias que, tal como qualquer profissional em qualquer área, têm a ambição de chegar aos grandes palcos.
James Keothavong, o árbitro de cadeira do encontro da primeira ronda entre Frederico Silva e Nick Kyrgios, foi juíz de linha em Wimbledon 1999. A experiência cativou-o e fê-lo sonhar. Entretanto também ele se tornou num dos melhores da profissão.
Vejamos o caso português: para além de nomes como os de Carlos Ramos, Mariana Alves, Carlos Sanches e Rogério Santos, entre outros, como árbitros de cadeira e supervisores, tem sido relativamente frequente a presença de alguns árbitros lusos em torneios do Grand Slam (e não só) como juízes de linha.
Se lhes cortam o sonho, o que é que lhes resta?
Em 2021 são “apenas” os Masters 1000 em piso rápido e os torneios do Grand Slam, porque a tecnologia ainda é cara (o New York Times fala em 25.000 dólares por court) e a pandemia assim o obriga. E no futuro? Quantos anos restam até que a supervisão eletrónica seja adotada pela generalidade dos circuitos ATP e WTA? Não muitos, a avaliar pela fome de inovação global e o forte apoio de alguns jogadores-chave.
E quando assim for, a que almejarão os juízes de linha que já só terão espaço para trabalhar, evoluir e sonhar nos circuitos secundários? Onde estarão em 2030 os árbitros de 2040?
Talvez seja um exagero, talvez não. Mas em 2021 já não houve uma futura Eva Asderaki a ter um primeiro contacto com o sonho no Australian Open…