Diário de uma quarentena na Austrália: a rotina e o regresso à liberdade! (por Pedro Felner)

Nunca pensei que a prenda de Natal da minha mãe me poderia vir a ser tão útil. A autobiografia de Obama tem sido uma autêntica inspiração e a minha companheira de muitas horas de leitura. As quase 800 páginas do livro têm-se revelado insuficientes para a minha vontade de o ler e para o tempo disponível. Às tantas dou por mim a “poupar” o livro, pensando para os meus botões: “não leias tanto que isto tem de aguentar até ao fim da quarentena”.

Entretanto os dias foram passando e lá consegui convencer-me a cuidar do físico. Comecei a pensar num programa de treino adaptado a um quarto com pouco mais de 20m2. Optei por um circuito simples, a fazer lembrar as poucas semanas que cumpri no serviço militar: umas flexões de braços, alternadas com abdominais, agachamentos e umas corridas curtas. Deu para transpirar e para justificar um bom banho quente.

Durante o dia divirto-me a ler, escrever ou ver séries na Netflix. As noites são mais intensas e longas. Já é de dia em Portugal e, como tal, acabo por passar muitas horas em vídeo-chamadas consecutivas a tratar de assuntos de trabalho ou a desfrutar da família e dos amigos.

O tema da comida foi um dos mais controversos nos primeiros dias da nossa quarentena na Austrália. A grande maioria dos jogadores foi manifestando o seu desagrado à organização. Nos primeiros dias achei despropositado. Existiam problemas bem mais graves para resolver, tanto para a organização como para nós próprios. No entanto, com a situação estabilizada e com a rotina da quarentena a apertar, este tema começou a fazer mais sentido para mim. Começa a ser cada vez mais difícil comer muitas das refeições que me fazem chegar ao quarto. Apesar da preocupação de nos enviarem “comida saudável”, começa a apertar (e muito!) a vontade de comer coisas que me dão prazer. Dou por mim a “sonhar” com coisas tão simples como uma torrada com manteiga, um bom queijo ou uma sopa quente. Ou, simplesmente, um bom hambúrger com batatas fritas e uma Cola. Aqui, esta última opção está à distância de um pedido na Uber Eats e por vezes torna-se irresistível!

Os meus últimos dias foram também marcados por uma notícia muito triste para mim. A minha avó materna faleceu durante a noite. Apesar dos seus 94 anos, é sempre duro perder alguém que nos é tão próximo. E a minha avó Odete era mesmo muito próxima, para além de ter tido um papel muito importante para mim, especialmente na minha infância e adolescência. Mais duro ainda é estar longe dela e da minha família neste momento. A pandemia tem sido dura para todos nós, mas a atrocidade que tem feito aos mais idosos é insana. Dotar pessoas desta idade ao isolamento quase total é assombroso. Também ela acabou por ser vítima das consequências da pandemia, mesmo sem nunca ter sido infectada, nem aparecer nas estatísticas da DGS.

Aderimos sempre à reunião com a Tennis Australia com a expectativa de receber boas notícias relativamente ao confinamento, esperando que antecipassem a nossa saída. Não tivemos sorte. Apesar do voo de Doha ter tido um caso positivo, a verdade é que nunca mais ninguém do nosso voo testou positivo. Passados 10 dias da nossa chegada, a probabilidade de alguém vir a testar positivo já era praticamente nula. Este argumento foi servindo para propormos à Tennis Australia uma “bolha” dentro da “bolha” com os jogadores que estiveram no voo de Doha. Concordaram e foram sensíveis à nossa situação, mas nunca conseguiram convencer as autoridades de saúde.

Assim, a nossa saída estava prevista para este sábado e contávamos sair ao final dos 14 dias, o que nos permitiria estar livres exactamente à hora a que chegámos ao hotel, ou seja, por volta das 9h da manhã. Pelas nossas contas, teríamos 3 dias de treino (sábado, domingo e segunda) até ao jogo da primeira ronda do ATP 250 de Melbourne. Entretanto, a dois dias do final da nossa quarentena, mais uma má noticia: a entidade de saúde australiana só nos deixava sair do quarto no sábado à noite! Esta notícia foi muito mal recebida por todos os jogadores e treinadores, como aliás era de esperar. Para além de não ter nenhum fundamento em termos científicos (todos os jogadores e treinadores estavam confinados e com testes negativos há 13 dias consecutivos!!) comprometia bastante a preparação — já de si difícil — dos jogadores. Se preparar um torneio em três dias — depois de uma quarentena de duas semanas — já era difícil, fazê-lo em apenas dois tornou as coisas ainda mais complicadas.

No entanto, estamos entusiasmados por estar a chegar ao fim desta “experiência inesperada” e já começámos a preparar o nosso regresso aos treinos.

A nossa maior preocupação ao longo destas duas semanas foi tentar minimizar ao máximo os riscos de lesão no regresso à competição e tentar manter os índices físicos. Estamos muito satisfeitos e confiantes com o trabalho feito ao longo destas semanas. Agora é tentar colher o máximo de sensações no campo nas poucas horas de treino que nos restam e desfrutar da possibilidade de voltar a competir.

Nos próximos dias temos treinos agendados com o americano Maxime Cressy, com o boliviano Hugo Dellien e com o russo Roman Safiullin. Restam-nos 4 sessões de treino até ao jogo de terça-feira com o checo Jiri Vesely, actual 68 ATP.

Esta situação é nova para todos e, como tal, é grande a incerteza do que conseguiremos fazer nesta primeira semana em termos competitivos. Por razões óbvias as expectativas não são grandes, mas a motivação, a determinação e a competitividade do Frederico podem fazer milagres.

Até breve!

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