Diário de uma quarentena na Austrália: a adaptação (por Pedro Felner)

Ao terceiro dia de quarentena decidi falar com o Pedro Almeida — destacado académico na área da psicologia do desporto — no sentido de lhe pedir apoio para o tempo de quarentena que nos restava. O Pedro trabalha connosco há vários anos, é alguém em quem confiamos e que tem sempre um discurso positivo e realista, tornando simples para nós a complexidade científica dos temas ligados à mente.

Pedi-lhe que nos ajudasse a passar o melhor possível estas semanas, dando principal ênfase à necessidade de mantermos o Frederico mentalmente saudável, motivado e confiante para os desafios pós-quarentena.

Agendámos uma sessão online a três logo para o dia seguinte, mas entretanto vieram os primeiros conselhos: 1) mantenham uma rotina de trabalho e de contactos com os que vos são próximos; 2) aceitem as coisas como são e não percam tempo e energia a lamentar a situação; 3) organizem um plano de treino físico que vos mantenha activos. No que me toca, os dois primeiros estão cumpridos. O terceiro está mais difícil.

Para manter alguma lucidez acabo por passar algum tempo à janela a ver pessoas e a desfrutar da liberdade dos outros. A testemunhar a forma como o exercício físico faz parte da cultura australiana. Durante todo o dia, assisto a novos, velhos, homens e mulheres a correr, caminhar, andar de bicicleta ou fazer canoagem no rio. Divirto-me a ver a roda viva em frente ao hotel, com a polícia e os carros oficiais do torneio num vai e vem. Com as pessoas que caminham em frente ao hotel e que, com o aparato, se apercebem de que está aqui “presa” uma comitiva do Australian Open e nos acenam com sorrisos simpáticos do género “aguentem-se aí que nós não queremos o vírus de volta”!

Com os paparazzi que, num exercício de paciência interminável, passam horas escondidos nas árvores ou em frente ao hotel — com câmaras fotográficas que mais parecem bazucas — a tentarem captar imagens dos jogadores nos quartos.

Por estes dias as redes sociais e as televisões na Austrália foram inundadas por fotos e videos das sessões de treino que os jogadores foram improvisando nos seus quartos de hotel. Valia de tudo: colchões da cama, armários, garrafas de água e tudo aquilo que a criatividade conseguisse arranjar.

Entretanto, a última reunião com a organização do Australian Open acabou por não nos trazer grandes novidades. Craig Tiley explicou os esforços feitos pela Tennis Australia para tornar possível o evento. E foram muitos. Entre muitas medidas, a organização do AO fretou 18 aviões e pagou 9 milhões de dólares para poder transportar, na máxima segurança possível, 1200 pessoas de varias pontos do globo, entre jogadores, equipas técnicas e staff da prova. Acabei zangado com os comentários de vários jogadores ao longo da reunião. Pouco sensíveis às dificuldades da organização e ao esforço que estão a fazer para tornar o evento possível e para dar as melhores condições de segurança e conforto aos jogadores e às suas equipas. Tendo muita da opinião pública contra a o evento, era importante que, pelo menos para fora, os jogadores fossem solidários, respeitassem as regras locais e as decisões oficiais. Entretanto, esta situação tem feito as manchetes dos canais de notícias por aqui. Por culpa própria, começa a sentir-se uma onda de indignação da população e dos políticos locais contra os jogadores. Numa das reportagens, uma directora de saúde pública acabou por tocar na ferida: “Nós, australianos, passámos por meses de sacrifício e privação durante a quarentena e agora os jogadores, que vêm para aqui ganhar milhares de euros, acham-se no direito de poder furar as regras e, com isso, colocar em risco a nossa saúde pública.” Pelo meio, ainda deu a entender que os jogadores eram uma cambada de meninos ricos e mimados. No final, fiquei a pensar cá para mim: pode não ser justo generalizar, mas a senhora talvez tenha alguma razão.

Para piorar a situação, ao longo do dia é tornada publica uma carta do Novak Djokovic — actual número 1 do ranking ATP — onde reclama por melhores condições para os jogadores e critica o facto de ele próprio ter condições diferenciadas — para melhor — na sua quarentena em Adelaide. Apesar de ter alguns pedidos mais ou menos exequíveis, a carta acaba por também cair em descrédito quando pressiona as autoridades locais de saúde para abrirem mais uma excepção aos jogadores no que toca à quarentena obrigatória e quando propõe que a organização disponibilize “vivendas” com campo de ténis para os cerca de 70 jogadores e treinadores que se encontram nesta situação. A intenção foi boa mas era escusado.

Estar de quarentena nem sempre significa ter sempre tempo livre. O dia de hoje foi prova disso: carreguei o telefone duas vezes, não toquei no livro que ando a ler e escrevi estas linhas já fora de horas.

As noticias vindas de Portugal não têm sido as melhores e têm tido consequências directas para muitas pessoas e empresas. Acabei por estar horas em vídeo-chamadas a avaliar a situação, a fazer contactos e a tomar decisões sobre como organizar a academia nas próximas semanas (esperemos que não sejam meses!).

Outro aspecto positivo do confinamento é a disponibilidade para falarmos com aqueles de que mais gostamos mas que, na intensidade do dia a dia, acabamos muitas vezes por adiar o telefonema por semanas ou meses.

No meio de tudo isto, o segredo é mesmo agarrarmo-nos às coisas boas!

Continua brevemente…

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