Opinião: Tratamento preferencial não é uma novidade, mas agora está à vista

Roberto Carballes Baena “apanhado” à janela de um hotel em Melbourne

É quase tão antigo como cada desporto em que é praticado e normalmente surge como uma consequência natural do sucesso, quase globalmente aceite, mas o torneio do Grand Slam mais vigiado de sempre expôs um grau inaceitável: no Australian Open, o tratamento preferencial causa diferentes bem-estares num período em que a saúde mental é tão importante. Mas primeiro um pouco de contexto.

Um dos exemplos mais evidentes (mas ao mesmo tempo tão discreto pela sua quase inerência) de tratamento preferencial surgiu pela primeira vez no final do século XIX, quando um grupo de entusiastas norte-americanos experimentou ordenar os jogadores de um quadro de acordo com os resultados. Foi o início da definição de cabeças de série — “seeds” em inglês, com origem no termo “seeding”, escolhido pela semelhança entre distribuir os jogadores mais habilidosos/sucedidos pelo quadro de um torneio e plantar sementes num campo.

Um dos primeiros defensores do sistema foi Jahial Parmly Paret (finalista do US Open em 1899), que durante um par de anos relatou em várias publicações a “batalha” travada com o então presidente da United States Lawn Tennis Association, James Dwight, por sua vez um grande crítico do novo método. Passaram-se vários anos até que, há exatamente 100 anos, em 1921, a designação de cabeças de série foi autorizada em torneios de todos os níveis em solo norte-americano. Foi uma questão de tempo até que se deu a apropriação do sistema por todos os torneios, com Wimbledon a estreá-lo na edição de 1924.

Desde então, os melhores tenistas de cada torneio (por mérito próprio, claro está) têm, para além do ténis à partida de nível superior, a enorme vantagem de evitarem os principais rivais nas primeiras rondas, deixando para os já por si underdogs a hercúlea tarefa de abrir a semana com vitórias improváveis. Habituados ao ténis como ele é, já raramente encaramos este método entretanto tão natural como uma desigualdade.

Num plano inferior, o torneio de Wimbledon divide os jogadores de cada quadro por dois balneários. Ao contrário do exemplo anterior, neste caso não há uma influência direta no desenrolar da competição, mas não deixa de se tratar de um tratamento preferencial: o All England Club tem dois balneários (um masculino, um feminino) reservado aos jogadores que são considerados membros, ou seja, os ex-campeões e os 16 primeiros cabeças de série de cada edição, enquanto os restantes tenistas só conhecem os balneários mais simples, com menos espaço e luxos.

A título de curiosidade (porque não tem qualquer influência possível no desenrolar da modalidade), foi também em Wimbledon que surgiu um clube elitista a que todos almejam chegar: fundado em 1986 para celebrar o 100.º aniversário do torneio, o “Last 8 Club” é reservado aos tenistas que alcancem os quartos de final de singulares ou as meias-finais de pares de cada edição. A recompensa? Nada mais, nada menos do que credenciais vitalícias para cada jogador e um acompanhante (bem como bilhetes adicionais e acesso ao transporte oficial do torneio).

Mais recentemente, em plena pandemia o US Open transformou a ausência de público numa oportunidade de “mimo” para a elite: habitualmente vendidos a grandes empresas por 500 mil dólares, os camarotes de luxo construídos num dos anéis do Artur Ashe Stadium foram distribuídos pelos 32 cabeças de série de cada quadro de singulares, facilitando consideravelmente os momentos de repouso e descontração e, sobretudo, o distanciamento social numa fase difícil para todos.

É neste prisma que surge o caso australiano.

As circunstâncias fazem com que o Australian Open de 2021 só se torne possível graças a uma restritíssima quarentena que o governo concedeu e que atenuou consideravelmente, ao permitir aos jogadores e treinadores cinco horas de treino por dia fora do quarto de hotel, um luxo a que nenhum cidadão que chega ao país tem direito nos primeiros 15 dias desde que o país fechou as fronteiras e se protegeu como praticamente nenhum outro. E com a quarentena surgiu um novo dia-a-dia para os tenistas e com o novo dia-a-dia uma nova categoria de tratamento preferencial — muito mais intolerável do que os exemplos anteriores.

Novak Djokovic, um dos “sortudos” premiado com a presença de acompanhantes (membros da equipa e/ou família) e uma suite de luxo com varanda

Logo à chegada, os jogadores foram divididos entre Melbourne e Adelaide. Segundo os responsáveis, tratou-se de uma decisão inevitável — Melbourne, a cidade onde vão acontecer todos os torneios, estabeleceu um limite de pessoas que lá poderiam chegar para cumprir quarentena e, uma vez alcançado, a única solução possível foi negociar com outro governo local uma segunda bolha sanitária. Mas o caldo entornou-se quando foram definidas as condições de cada quarentena. Adelaide ficou reservada para “os jogadores de topo” (Novak Djokovic, Rafael Nadal, Dominic Thiem, Simona Halep, Naomi Osaka, Serena Williams e respetivos parceiros de treino de quarentena, como Dennis Novak, Jannik Sinner e Marc López, entre outros), que receberam luz verde para viajar com vários elementos, entre familiares e treinadores, enquanto todos os jogadores que viajaram para Melbourne ficaram restritos a dois — sendo que apenas um teria autorização para sair do quarto de hotel durante toda a quarentena.

É também em Adelaide que “os melhores jogadores do mundo” (um grupo do qual não faz parte, por exemplo, a número quatro mundial e campeã em título Sofia Kenin, que em 2020 também chegou à final de Roland-Garros) estão instalados em suites de luxo, com largas varandas, e têm acesso 24/7 a um ginásio.

Em Melbourne, por sua vez, os restantes jogadores/treinadores/elementos foram distribuídos por três hotéis e as condições variam consoante a classificação de cada um: alguns têm a sorte de poder abrir a janela, a maioria nem por isso; e vários têm quartos com ligação aos dos treinadores, pelo que podem trabalhar em conjunto, mas muitos não. O tempo de ginásio está limitado a 90 minutos por dia e colado às duas horas passadas no court.

Stan Wawrinka não está em Adelaide (foi um dos críticos, aliás, dessa segunda e mais luxuosa bolha), mas também não lhe falta espaço no quarto de hotel em Melbourne.

Se o isolamento total dos 72 jogadores relacionados com voos que revelaram testes positivos à covid-19 não devia sequer ser colocado em causa, porque é um desfecho lamentável mas necessário para a contenção da situação atual, todo este tratamento preferencial acentua as desigualdades no bem-estar e consequente preparação para um dos quatro maiores torneios do mundo.

Habitualmente tema consensual no que toca aos elogios tecidos pelos jogadores, o “Happy Slam” falhou num dos princípios básicos. E parece estar longe de o reconhecer: “Tenho a sensação de que está a ser visto como tratamento preferencial, mas eles são jogadores de topo. A minha regra geral é que se estás no topo do teu desporto, se és um campeão do Grand Slam, é natural teres condições melhores”, afirmou o diretor do torneio, Craig Tiley, numa entrevista recente.

Texto corrigido às 20h12: no segundo parágrafo a data correta é século XIX e não século XX, como inicialmente foi escrito por lapso.

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