Frederico Marques é o treinador de João Sousa e o quarto convidado da série de Grandes Entrevistas que assinalam o 10.º aniversário do Raquetc, esta publicada precisamente no dia em que o projeto foi lançado, então como Ténis Portugal, corria o ano de 2010. Responsável pelo melhor tenista português de todos os tempos, apaixonado pelo ténis, pela vida e numa perseguição constante pelo conhecimento, foi jogador até que aos 21 anos decidiu abraçar a carreira de treinador. Em 2014 aceitou o desafio de relatar um ano no circuito mundial de ténis e desde aí contou-nos muitas outras histórias, mas é nesta entrevista de fundo que revela episódios emocionantes — e marcantes — da relação profissional que mais títulos dá ao ténis nacional.
– Qual é a sensação de estar de volta ao court depois de mais de dois meses e meio em “teletrabalho”?
É bom, muito bom! Nunca estive completamente desligado da competição ou desligado do João, que depois de chegar de Indian Wells fez uma paragem de 10 ou 12 dias. Nesse período sim, ele não jogou ténis, mas tivemos sempre uma ligação diária em que eu lhe enviava a planificação do ténis e do físico, com todos os exercícios que ele tinha de fazer, os tempos de recuperação, descanso e havia sempre um feedback instantâneo, com áudio, e logo ao acabar o treino outra vez. Estive sempre muito ligado e tentámos fazer essas sessões da forma mais parecida ao que são na realidade, a querer saber quais eram as sensações dele de manhã e como é que ajustávamos o treino para a parte da tarde. Também aproveitei para fazer uma espécie de curso especializado no serviço e para continuar a aprender para que no momento em que voltássemos não custasse tanto. Vi bastantes jogos de ténis e também aproveitei para estar com as crianças e elas absorverem um bocadinho do ténis. Treinei com os mais pequeninos no jardim e estive sempre muito ligado ao ténis e ao desporto. Mas claro que estou com muitas saudades da competição e muita vontade de fazer a preparação para o jogo, aqueles momentos antes do jogo, o próprio dia do jogo, sentir o break point, a vitória, a derrota e o ambiente de cada torneio. Como eu digo muitas vezes, tenho a sorte e o privilégio de não ter um dia de trabalho, porque o que eu faço é o que eu amo. E portanto se tenho de estar três ou quatro horas aqui… Se calhar às vezes pode ser um bocadinho mais chato para o João, que pode querer descansar, mas eu tenho uma paixão pelo ténis que faz com que tudo isto seja um prazer. Os anos continuam a passar e parece que comecei ontem como treinador, porque amo mesmo aquilo que faço.
– No que é que se focaram mais durante estes dois meses? Houve alguma coisa que procuraram evoluir especificamente?
A parte física foi o pilar e para além disso o serviço. São aspetos que dá para trabalhar porque tivemos mais tempo e também tivemos a ajuda do pai do João, que esteve com ele diariamente lá em cima [em Guimarães] e que é uma pessoa que ama o ténis. Ele adora ver, adora analisar e gosta de discutir, é fácil ter esse diálogo com ele e falei muitas vezes ao telefone com ele para saber qual é que era a sua opinião, ter feedback e saber o que é que ele via. É uma pessoa que vê muito ténis e que adora ver e analisar os jogadores, o serviço, a resposta e ver o que é que fazem e é muito bom ter esse feedback. É uma pessoa que quer realmente que o João melhore.
Devido à lesão que o João teve no final da época não conseguimos fazer uma pré-época ao nível das outras em termos de carga física, de ginásio, nem no campo, com volume. Teve muito pouco volume e mesmo nos torneios sabíamos que não íamos estar tão competitivos, mas era preciso fazê-los para o João não estar tanto tempo sem competir. É uma lesão em que se ficarmos muito tempo parados por vezes ainda é pior, tínhamos de estar sempre em movimento e com o sangue a entrar, porque era maneira de recuperar um bocadinho mais rápido. E portanto competimos nessa condição, em que sentíamos que se chegássemos a um terceiro set não estaríamos tão rápidos e competitivos como habitualmente, mas agora aproveitámos esta paragem, que nesse sentido foi boa para nós, para recuperar a inflamação e aos poucos dar-lhe um bocadinho de carga. É isso que continuamos a fazer agora, a aproveitar para dar essa carga técnica, o volume de treino e a capacidade de jogar outra vez pontos compridos para voltar a estar competitivo.
– Tinhas dito que ele estava quase recuperado quando isto parou, mas sendo assim a paragem foi positiva na mesma…
Sim. Em termos da lesão, a dor já era muito pouca. Num grau de 0 a 10 estamos a falar de apenas 1, ou 2, enquanto quando começámos a competir estávamos com 7 ou 8. Foi um mês de muita dor, mas agora já estávamos a recuperar a forma e a conseguir treinar uma hora e meia, duas de forma regular, com dois ou três dias seguidos de treino. No Dubai já estávamos mais competitivos, a ganhar também alguns jogos de treino, e depois na Taça Davis o singular e o par deram-nos a dinâmica. Estávamos num crescendo, mas ainda faltava o aspeto físico. O João, como qualquer jogador do top 50, precisa de ter uma recuperação muito boa entre pontos e de um dia para o outro. Ainda por cima sabemos que habitualmente se chegarmos a um terceiro set ou se houver calor isso é bom para nós. Quanto mais adversidades houver melhor para nós, são armas que o João tem e sempre teve e nestes primeiros meses custou-nos um bocadinho não sermos tão fortes, mas agora esperamos voltar a 100%.
– Quem é que achas que esta paragem beneficia mais, os “trintões”, os Big Four, ou a nova geração?
Sinceramente acho que não vai fazer uma grande diferença. É verdade que houve uma grande paragem, mas depois dessa paragem houve o desconfinamento em que as pessoas puderam voltar a treinar e ainda há muito tempo. Acho que os que estavam a ganhar vão continuar a ganhar e os que não costumam ganhar não vão ganhar. No ténis não há muitos milagres nesse sentido. Mas claro que para um atleta que vinha a fazer duas semanas muito boas e agora teve de quebrar esse ritmo competitivo e o ‘estar a jogar em automático’ vão haver mudanças, ele vai sofrer um bocadinho, mas de uma forma geral não acredito que faça uma grande diferença. Os Big Four vão continuar a ganhar, o Thiem vai continuar a ser muito competitivo e o Medvedev e o Tsitsipas também, acredito que vai continuar tudo igual.
– Falou-se muito dos jogadores poderem melhorar estes meses de pausa para fazer mudanças e melhorias porque habitualmente não param. Mas e um treinador? O que é que um treinador pode fazer nestes dois meses para aprender? Como sei que gostas sempre de o fazer…
Muitas vezes durante o ano o treinador tem mais tempo do que o atleta, que com o stress da competição aproveita os momentos de descanso para desligar mesmo mentalmente. Durante a época é mais difícil fazer uma mudança no serviço, ou mudar um apoio na perna direita, ou um lançamento de bola, em que são precisas quatro ou cinco semanas sem competir para que ele não se preocupe, porque [essas mudanças] vão influenciar os padrões, vão fazer com que se perca ritmo e isso não é fácil para o jogador. Por isso é que às vezes os atletas vindos de uma lesão em que tiveram um ou dois meses para treinar aparecem e estão muito mais fortes, porque descansaram também mentalmente. Agora vão estar todos mais frescos, tanto os atletas como os treinadores, em termos de burnout. Vai haver encontros mais duros porque todos estão mais frescos mentalmente e acho que isso se vai notar não só no ténis como na sociedade, porque havia muito o ‘trabalhar, trabalhar, trabalhar’ e com esta paragem as pessoas estão mais frescas e vão ser mais eficientes.
No meu caso específico, houve imensos cursos e webinars com treinadores a falarem sobre ténis e a partilharem as opiniões deles em relação à iniciação, ao período de pré-competição, a competição, sobre o serviço, a preparação física… Eu gosto de ser uma esponja e quero sempre aprender para poder dar mais armas ao João quando volto a estar com ele e acho que um treinador deve ser assim. Houve tempo mais do que suficiente para se retirarem coisas positivas, ler dois ou três livros, tirar um ou outro curso, estar melhor fisicamente, etc. Eu acho que os princípios de jogada são muito importantes e baseei-me um bocadinho nisso: tentei falar com outras pessoas, ligadas aos circuitos americano e australiano, onde há muitos estudos e base científica sobre a velocidade de bola, a biomecânica da primeira e a segunda bola. Tentei falar com pessoas que já trabalharam com grandes servidores e aprender, para aproveitar esse tempo e passar essa informação ao pai do João, que estava com ele, já para criar uma boa base e agora, que estou com ele, tentar evoluir esses aspetos.
– Com a ausência de ténis ao vivo, as televisões têm aproveitado mostrar grandes clássicos. Tens o hábito de “visitar o passado” ou gostas mais de retirar coisas da atualidade?
Gosto de ver tudo o que seja ténis. Às vezes há um ou outro jogo do João que não correram tão bem e eu prefiro passar, mas gosto de ver e aprender com a maneira como os jogadores se comportam, os diferentes estilos e perceber como é que eles se veem. Nestes dias tive o prazer de fazer um webinar para a Vanguard e uma das sugestões que eu deixei às crianças foi aproveitarem toda a tecnologia que há e imaginarem-se no lugar dos jogadores. Fecharem os olhos, verem vídeos em slow motion e imaginarem-se no lugar do Nadal, do Federer a entrarem no court central de um grande torneio. Pensarem para onde é que ele serviu, onde é que poriam a primeira bola, o que é que lhe faria moça ou não e em certos tipos de jogada fazerem pausa no vídeo e pensarem ‘para onde é que eu jogaria agora’ e pensarem nas opções. São coisas super interessantes e eu faço isso até para ver se a minha leitura é a adequada e perceber como é que os adversários do João vão jogar. E no caso das crianças é importante para elas sentirem e imaginarem como é entrar num estádio daqueles, com os aplausos das pessoas e as reações a um winner. Há muitos estudos que falam sobre isto, casos de pianistas que se imaginam a tocar durante algum tempo e depois de cinco dias sem o fazerem voltam melhor.
– Isso aplica-se também ao trabalho com o João?
Muitas vezes faz sentido, é uma maneira de visualizar e trabalhar padrões de jogo. Pensar que naquele momento importante pode servir para ali, meter a segunda bola num ou outro lado, que depois ele o vai fazer jogar numa determinada zona… Eu também utilizo muito esta técnica quando estou a correr: imagino a reação dele, a jogada, imagino-o a ganhar um título e a celebrar comigo. A corrida dá-me isso, quando estou sozinho com a música penso nestes cenários. Tento sempre ser um jogador de xadrez e ir à frente, pensar no que pode acontecer ou não pode acontecer. Mesmo agora, estamos aqui a falar e eu hoje de manhã, quando fui correr, pensei no que é importante dizer e na conversa que podíamos ter.
– Num direto com o Pedro Felner, ainda nas primeiras semanas da quarentena, falaste de como era importante o João parar, perder alguma massa muscular, recuperar, parar e recuperá-la novamente. Podes elaborar um pouco esta forma de trabalhar?
Em termos de carga de treino é muito difícil um atleta estar a trabalhar cinco ou seis semanas à mesma intensidade todos os dias. Chega a um momento em que começa a perder… É como se fosse um balão: o balão vai enchendo e enchendo e enchendo, até que chega a um momento em que nós ainda temos ar e queremos enchê-lo, mas ele não vai encher mais e pode rebentar. Se queremos usar esse ar é preferível retirar algum e fazer por fazes. Ou seja, se eu quero que ele esteja bem daqui a oito semanas vou dividi-lo num bloco de três semanas, depois uma de pausa em que há uma redução da parte física, mas também mental para ele estar muito mais fresco e predisposto a reagir e depois e novamente três semanas em que lhe dou a carga. Em relação ao João, fizemos um bloco de quatro semanas seguidas de uma muito mais tranquila, em que o treino físico foi de manutenção, que foi suficiente para ele regressar com sensações muito melhores, a enquadrar-se muito mais facilmente com a bola e muito mais vontade. Volta com velocidade, volta a sentir-se rápido. O corpo é uma máquina, mas também é preciso descanso — o descanso é essencial! Não se pode exigir ritmo, ritmo, ritmo e querer que esteja sempre a ganhar. E nas pré-épocas é exatamente isto que acontece, fazem-se as férias logo a seguir aos últimos torneios para o corpo perder massa muscular e depois haver tempo para a recuperar.
– Quando falámos durante a quarentena falaste-me do quão difícil era estarem a treinar sem ter uma data certa em relação ao regresso. Neste momento está para 31 de julho, mas está longe de ser garantido…
Temos trabalhado sempre com as datas que a ATP nos diz. Estávamos a trabalhar para a primeira data de julho, depois voltaram a adiar e agora estamos a apontar para dia 1 de agosto. Vou ‘jogando’ um pouco com as informações que eles nos dão, se de repente nos dão mais 15 dias e estávamos a fazer um bloco de quatro semanas eu passo a três, dou uma de descanso e voltamos a trabalhar. Neste momento temos de ir jogando com as datas. Sei que há a possibilidade de ele jogar alguns torneios cá em Portugal e também já temos um em Espanha, portanto já sabemos que antes de chegarmos a essa altura vamos ter uns dias mais off para haver essa descarga e ele chegar lá com boas sensações e poder estar mais competitivo. Pode ganhar ou não, não é uma fórmula mágica, mas tentamos sempre apontar para que esteja a 100% a nível mental e físico no momento de voltar.
– Esse torneio de que falas é no início de julho. Já fazia falta uma semana com aspeto de competição? Porque no fundo os jogadores são “animais competitivos”, é para isso que eles treinam…
O João vive da competição e compete muito bem, mas também treina muito bem. Há atletas que adoram treinar, outros que não, outros que adoram treinar, mas depois lhes custa competir. O João treina muito bem e compete um bocadinho melhor, mas também desfruta muito dos treinos, de suar, de ser exigente e ter essas sensações. É óbvio que todos os jogadores vivem da competição, tal como eu, temos todos essa necessidade, mas ao mesmo tempo sabemos que vínhamos de uma lesão e que há aspetos que podemos melhorar e trabalhar. Se compararmos com os atletas de 36, 37 anos o João ainda é jovem, portanto não há que ter pressa nem para começar a competir, nem para começar a treinar. Acho que o principal objetivo deve ser estarmos saudáveis e que os torneios possam ser feitos de uma maneira segura.
– Para além dessa paragem em Espanha, o que é que já têm planeado?
Há essa possibilidade de jogar em Portugal, mas não vamos tomar nenhuma decisão até a ATP falar connosco [há uma reunião marcada para 10 de junho, com um anúncio oficial esperado a 15]. Se a ATP disser que se vai começar a competir dia 1 de agosto é uma coisa, a 10 de setembro por exemplo é outra, e outra ainda se não houver mais nada este ano. Por isso vamos esperar. A nossa prioridade é jogar a nível internacional e subir rapidamente no ranking devido à lesão que o João teve.
Temos esse torneio em Espanha assegurado, porque temos uma ligação muito forte ao Juan Carlos Ferrero e ao Sami [Samuel López, co-fundador da JC Ferrero-Equelite Sport Academy], que é um dos diretores, e também ao Carreño, que é o parceiro de pares do João para esta época. São pessoas que conhecemos há muitos anos e já queríamos fazer uma pequena paragem lá em Espanha para estarmos com eles. Também lá vão estar o Alex de Minaur, o Feliciano López e o Carlos Alcaraz, portanto é um grupo muito bom e vão ser quatro dias perfeitos para ganhar e ritmo e não só competir, como treinar ao mesmo tempo e com eles, porque aí o ganhar ou perder não é tão importante.
Esse torneio em Espanha está confirmado e depois há outra hipótese em cima da mesa, 80% certa, que é irmos para Cannes, no Sul de França, treinar com o Medvedev logo a seguir. Já estava previsto na pré-época, mas o João teve aquela lesão e optámos por não ir não estando a 100%. Quando saímos de Miami também tínhamos confirmado, sabíamos que o circuito ia parar, mas não desta forma em que parou quase o mundo todo, e acabou por não ser possível irmos lá fazer 10 dias. Temos estado a ver quando é que há essa possibilidade e agora está para julho, possivelmente jogando uma ou outra exibição ou torneio no Sul de França, mas sempre com essa ideia de treinar de manhã com o Medvedev e fazer um torneio à tarde, tal como vai acontecer em Espanha.
– Calculo que seja tudo em piso rápido…
Sempre em piso rápido porque a prioridade são os primeiros torneios ATP que estão marcados. Se disserem que afinal já não vão para a frente e que começamos na Europa, com Madrid, Roma e Roland-Garros em terra batida então as coisas mudam um bocadinho.
Gostamos de ter as coisas todas planificadas com algum tempo, mas neste momento tem mesmo de ser semanalmente e vamo-nos adaptando à situação. Para já, a ideia é estarmos aqui entre duas a três semanas [a semana em que a entrevista é publicada é a segunda de Frederico Marques e João Sousa em Lisboa], na terceira talvez vá eu ao Norte. E depois já vamos fazer alguma aproximação a Barcelona, porque há muito tempo que não vamos lá, e depois sim, vamos à Equelite [academia de Juan Carlos Ferrero]. Estes dias passam muito por perceber as sensações do João. Ele esteve muitas semanas a fazer baldes e antes de descer já fez situações de troca de bolas com o Nuno Borges e o João Monteiro, mas mesmo assim apareceram-lhe as bolhas e agora ainda mais, porque a carga tem sido cada vez maior. Temos de nos aproximar o mais possível do que aí vem nos próximos meses, mas ainda há tempo. Estamos a ir bem.
– O João está com 31 anos. O que é que ainda vos falta atingir?
Para mim falta tudo (risos). Sou muito ambicioso comigo, sou muito ambicioso com o João e acho que o melhor ainda está para vir. Se calhar o mais bonito em termos nacionais já fez, porque ganhar o Millennium Estoril Open em casa é realmente muito bonito e especial, mas falta continuar a ajudar Portugal na Taça Davis para chegarmos ao Grupo Mundial. E em termos internacionais ainda falta muito e acho que o melhor do João está para vir. Há muitos exemplos de jogadores que quando chegam aos 32 anos explodem outra vez e de uma maneira mais estável e ao João não falta nível. Pode faltar ser um bocadinho mais explosivo no serviço ou numa ou outra pancada, como uma esquerda ao longo, mas são aspetos que pode trabalhar. Estamos a falar de um dos atletas do top 30 que mais finais fez e em todas as superfícies e continentes. Não são precisas apresentações e ele já ganhou a vários jogadores top 10, como o Medvedev, o Zverev, o Thiem, o Goffin e o Bautista. Acredito que o melhor do João ainda está para vir porque ele vai conseguir fazer mais semanas lá em cima. Estamos a falar de um atleta que faz quatro ou cinco semanas a muito bom nível e se conseguir fazer sete é a diferença entre estar a 45 ou a 22, por exemplo. E é essa estabilidade que ele já começa a demonstrar, de conseguir mais dias a um bom nível e mais dias seguidos. Conseguir que um treino menos bom não seja tão dramático e retire tanta confiança, ou que um torneio menos bom não o leve tão abaixo, são coisas que chegam com essa maturidade de que falo. O equilíbrio entre não ser a euforia total quando ganha e não ser o pior do mundo quando tem uma derrota com que se calhar não estava a contar. O João aceita cada vez de forma mais positiva o erro, não é tão afetado por uma semana menos boa e já consegue manter a tranquilidade depois de um bom resultado, o que é importante porque os picos de adrenalina trazem cansaço. E eu ao vê-lo evoluir assim tenho esperança de que ainda se possa ver o João mais semanas no top 30.
– E tu, como treinador, pensas muito no pós-João?
Agora que estamos em Portugal vivo 50% para a minha família e 50% para o João, mas quando estamos fora é 90% João e 10% família. Tenho a sorte de ter uma família espetacular e uma esposa que me apoia sempre. Sou completamente focado no João e não penso na minha carreira ou onde gostaria de estar, o que gostaria de fazer ou num jogador melhor ou pior. O que quero é que ele seja melhor todos os dias e que a cada ano se torne um jogador melhor, um João diferente, que acompanha o circuito. Porque um atleta tem dois picos: há o momento de evolução, que pode ser aos 18, 22, 23 anos, e depois chega o momento de estabilização no top. É por isso que vemos o Nadal a querer evoluir o serviço, o Federer a surgir com uma pancada diferente: querem manter-se no topo. E o João também tem tido essa capacidade de se adaptar constantemente ao circuito. Quando ganhou Kuala Lumpur era um jogador bastante diferente daquele que é agora, há essa adaptação.
A nível pessoal eu sempre disse que quero estar na final de um torneio do Grand Slam, é para isso que trabalho. É isso que quero e é por isso que às vezes digo ‘é muito bom estarmos nos oitavos de final de Wimbledon, ou do US Open, mas queremos mais!’ Porque é possível, a partir dos quartos de final tudo é possível. Os quadros abrem, começa-se sempre empatado e um break point, um jogo podem fazer a diferença… Às vezes é mais fácil chegar à meia-final de um Grand Slam do que de um Masters 1000.
– Tens um tipo de jogador ideal que gostasses de trabalhar?
Acho que o jogador ideal é aquele que te ouve. É alguém com quem o treinador saiba que a informação está a ser transmitida, recebida. Eu tenho essa sorte com o João. Às vezes as pessoas dizem que ele fala muito e que parece que não está a ouvir, mas ele ouve tudo e por isso é que também é tão bom. Pode estar ali a gritar, mas aquilo está-lhe a entrar, fica-lhe sempre lá. E isso é espetacular.
Em termos de jogo, a minha maneira de trabalhar é próximo da linha, a tirar tempo ao adversário. É um estilo de jogo com muita dinâmica, muita iniciativa e também me fui adaptando um bocadinho. Eu tenho a base espanhola, mas fui-me adaptando ao circuito e hoje em dia acho que sou ‘um treinador de circuito’, porque estou sempre a tentar aprender com os melhores e ver o que é que os melhores fazem. Gosto desse tipo de jogo, que se calhar não é tanto o servir ou responder muito forte, mas mais o retirar tempo ao adversário e estar pouco tempo parado. No fundo é um bocadinho a imagem do João.
– Nos teus tempos de jogador já pensavas que um dia quererias ser treinador?
Nunca pensei em ser treinador. Eu nasci no ténis, porque o meu pai e o meu irmão puseram-me no ténis e eu rapidamente comecei a conhecer o mundo, a saber o que era ganhar, o que era perder, as frustrações e diferentes sensações. O meu pai sempre me levou ao CIF aos fins de semana e o meu irmão foi o meu treinador durante muitos anos. Foi ele que me ajudou a ter nível para chegar ao CAR [Centro de Alto Rendimento] e depois continuei a fazer o meu percurso. Mas sempre tive a necessidade e sempre gostei de comunicar com as pessoas e de aprender. Sempre adorei aprender. Desde os aspetos da condição física, da prevenção de lesões, ao serviço, a resposta, a parte da estatística e da análise, o yoga e a meditação, a alimentação… Há tantas coisas que se podem incorporar no ténis e eu acho isso espetacular. Sou uma pessoa que adora aprender.
– No circuito consegues ter essas experiências de partilha?
No circuito é muito mais fácil do que por exemplo em Portugal. Custa-me um bocadinho dizer isso, mas quanto mais as pessoas sabem, mais dão. No circuito o treinador não tem medo de partilhar, é muito fácil estar a fazer uma pré-época com o Nadal, com o Djokovic ou ao lado do Bresnik [ex-treinador de Dominic Thiem] e perguntar-lhes o que é que achas do serviço, da resposta, da direita. É muito mais fácil, existe muito esta abertura para falar e eu acho isso importantíssimo. Eu não tenho medo do João estar ao meu lado e perguntar a um treinador o que é que ele acha, ou o que é que ele faria. Não tenho medo que ele diga ‘oh João, experimenta isto’. Não considero que ele esteja a passar por cima de mim, acho que é uma forma inteligente de vermos as coisas até porque o que eu quero é que ele ganhe. Claro que há treinadores que partilham mais do que outros, mas existe muito esse à vontade.
Acho que devemos todos crescer juntos. Mesmo agora, com o fisioterapeuta do CAR que nos está a ajudar, o Tomás [Mendes], eu tento sempre ter essa ligação e essa troca de conhecimentos com ele. Porque quando ele não estiver eu quero conseguir perceber um bocadinho e poder ajudar o João, ou que ele também tenha essa sensibilidade e consiga recolher alguma coisa nalgum momento em que eu não esteja. Acho que esse pacto e essa partilha entre pessoas é importante, não ganhamos em não dizer nada. O conhecimento tem de ser partilhado, senão não faz sentido nenhum. E eu também aprendi muito isso em Espanha, porque os treinadores vão jantar e falam muito de ténis, trocam muitas impressões.
– Como é que preparas um encontro? É um processo em que envolves o João? Há muita visualização de jogos?
Vou evoluindo e neste momento utilizo mais a estatística, porque tornou-se muito mais fiável. Às vezes vendo um vídeo no Youtube posso ter uma perceção errada do local para onde ele vai servir, porque só estou a ver aquele momento, enquanto a estatística permite-me saber que quando ele enfrenta um break point serve para aquele lado em 75% das vezes, sabe-se o que é que ele fez nos últimos seis ou sete jogos… Também me ajuda a dar alguma tranquilidade ao João em momentos em que ele possa não estar tão certo do que fazer. Depois em termos de preparação gosto sempre que aconteça antes, não gosto de falar 10 ou 15 minutos antes dele entrar em campo porque aí o jogador já está demasiado focado e com o nervosismo não vai ouvir nada. Quando ele ganha e tem um dia off muitas vezes começo logo a dizer-lhe ‘olha, vais jogar contra este e ele costuma jogar desta forma’, porque assim ele tem aquele dia para ir metendo as coisas na cabeça. Às vezes ao jantar, no dia antes do jogo, falamos um pouco da forma como o adversário joga e pergunto-lhe sempre o que é que ele acha. Peço sempre a opinião ao João, para saber se ele já o conhece, se não conhece, o que é que sentiu quando jogou contra ele. Gosto de lhe dar muito espaço para pensar. E depois acho importante haver um bom aquecimento, para ele entrar logo a suar e estar mais ativo e não entrar tão nervoso. No meu caso claro que também gosto de ver vídeos, mas gosto sempre de espreitar ao vivo. Se o jogo do adversário não coincide ou acaba depois do do João gosto sempre de ir lá espreitar, ver dois ou três jogos para perceber como é que ele reage, se está com confiança, se comunica muito com o treinador. Também gosto de ver com quem é que ele jogou nas últimas semanas e falar diretamente com os jogadores. É um processo que está sempre em evolução e há algumas coisas que vou alterando, vejo se funciona ou se já não está a ter tanto efeito e por vezes mudamos um pouco.
– Já tiveste de preparar jogos contra praticamente todos os grandes nomes do circuito. Houve algum aspeto que te surpreendeu mais, ou que estavas à espera e se calhar não aconteceu? pensando também especificamente nos encontros com os Big Four…
Não há muitos segredos. O difícil é conseguir chegar lá e fazer com que os nossos padrões sejam mais fortes do que os deles. Conseguir servir melhor, fazer uma resposta melhor, se calhar no nosso caso ocupar 70% do campo com a direita, mas depois eles não nos deixam e vão deslocar-nos de uma maneira que faz com que a nossa bola deixe de causar tantas dificuldades. Mas o que às vezes me deixa mais chateado são os encontros que são ganhos fora do campo, pela aura do jogador. E é nesse sentido que eu quero que o João acredite e ‘perca o respeito’ por eles. Um jogador pode ter a melhor tática do mundo, ou estar confiante porque vem de muitas vitórias, mas se chega lá e não acredita… Já houve momentos em que o João podia ter feito muita moça aos Big Four.
Em Wimbledon o Nadal jogou muito bem, mas sendo em relva, com os padrões com que o João estava a jogar… Mas lá está, não é fácil porque muitas vezes nunca se entrou naquele campo, enquanto eles chegam lá 10 dias antes, treinam nesse court quase todos os dias antes do torneio começar, depois estão numa quarta ronda e se calhar os três encontros anteriores também foram todos lá… É difícil. Eu tento pôr-me no papel do João, mas é preciso acreditar e antes de pensar em ter uma boa esquerda, uma direita, um serviço, é preciso ir contra essa aura.
Muitas vezes vemos um Kyrgios, ou o Tsitsipas, os atletas mais novos que recentemente lhes conseguiram ganhar é porque lhes retiram essa aura. Às vezes as pessoas veem isso como uma falta de respeito e dizem que ‘hoje em dia os miúdos são mal educados’, mas não. É uma maneira inteligente e muito trabalhada de os combater, esses miúdos começam desde os 14, 15 anos a pensar ‘o que é que ele faz melhor do que eu? Ok, passa a bola mais comprida, com mais efeito, mas de resto também é um homem, também fica nervoso e tem medo, também dorme mal, também pode ser afetado por mil e uma coisas’.
É importantíssimo, mesmo para as crianças, percebermos que eles também são humanos, que também têm medos, às vezes até podem ter mais pressão por terem muitos pontos a defender. E eles também falham, também têm dias menos bons. O João já chegou a treinar com o Federer e a ganhar-lhe por 6-4 e 6-0, há momentos em que se vê realmente que eles também têm dúvidas e esses momentos são oportunidades. Não se pode confundir com a falta de respeito, estou a falar de acreditar. Porque isto é xadrez, e a partir do momento em que acreditas isso faz toda a diferença. Isso vê-se em todos os desportos, no futebol o Mourinho e o Ronaldo são os primeiros a entrar em campo e entram de cabeça erguida, chegam-se à frente e tomam decisões. Pode-se errar, mas é muito importante apontar para cima e acreditar.
Há um exemplo muito, muito claro do Tsitsipas a jogar em Madrid contra o Nadal, no ano passado. Há uma bola que é muito perto da linha, o Nadal vai lá e marca-a como sendo fora e o Tsitsipas pede ao árbitro para verificar. Pode passar ao lado de muitas pessoas, mas são pormenores que fazem a diferença. Aquilo é uma maneira de dizer ao Nadal ‘tu és o Nadal, mas também podes estar errado’ e de ganhar presença. O Kyrgios faz exatamente a mesma coisa, ou às vezes tentar um ás num segundo serviço, um “vamos”. E isso é legítimo. Por isso é que depois também vemos um [Andreas] Seppi a ganhar ao Federer na Austrália, porque são jogadores da mesma geração. É por isso que o João pode eventualmente ganhar a um Thiem se ele for número um do mundo, ou a um Tsitsipas, porque essa aura já não é tão grande. E também é por isso que já fizemos pré-épocas com o Nadal, com Djokovic, para existirem esses momentos em que jogamos com eles, em que fazemos outras coisas, ganhamos uns sets em treinos aqui e ali. Só que muitas vezes no momento de competição há o ambiente, há o público, o campo… Mas um jogador que chegue à quarta ronda do US Open ou de Wimbledon é um jogador que está a um nível altíssimo e aí não há quadros bons, portanto porque não tentar ganhar? Claro que podemos chegar lá e acabar por perder 6-2, 6-2 e 6-2, mas é a atitude. O haver uma raquete no chão, um grito, um chatear, quando isso não acontece é porque a situação está a controlar-nos e somos nós que temos de tentar controlá-la. São esses momentos que fazem a diferença, é para esses momentos que estamos há mais de 10 anos a trabalhar e em que podemos dizer ‘olá’ ao mundo.
Como já disse, com o João a amadurecer mais um bocadinho agora e com o nível a que acredito que ainda pode chegar fisicamente, se as lesões o respeitarem, depois são esses jogos que fazem a diferença entre estar a 30 ou a 15, porque estamos a falar de 180 pontos que passam a 360 e de 360 que passam a 700.
– Já viveste muitos momentos diferentes, mas qual é que é o mais feliz da tua carreira?
Os momentos mais felizes da minha carreira foram os dois oitavos de final nos Grand Slams. Os Grand Slams para mim são o máximo. Estás nos 16 melhores jogadores, teoricamente entre os 16 melhores treinadores daqueles 15 dias… São campeonatos do mundo, em que estão os melhores e estar ali com os melhores jogadores, os melhores treinadores, os melhores fisioterapeutas… Toda a gente sabe que quanto mais o torneio avança mais facilidades há, melhores campos tens para treinar, melhores tudo. E é realmente brutal. Depois dessas duas vitórias, com o Pouille num estádio pequenino e depois em Wimbledon com o Evans, no primeiro dia em que a cobertura do Court 1 fechou, com um jogo que acabou à noite… As pessoas que estão a trabalhar no balneário dão-te os parabéns, as pessoas do transporte também… Aí a sensação foi mesmo de ‘todos os anos de sacrifício valeram a pena’, é aquilo com que sonhas. O Millennium Estoril Open é muito bonito, ganhar outro torneio ATP 250 é bonito, mas sinceramente trabalhamos para estar nos grandes palcos e estar a competir com os melhores do mundo e nos grandes torneios.
– E em sentido contrário, aquele em que ficaste mais em baixo?
(pausa) Fiquei muitas vezes em baixo, depois é uma questão de demonstrar ou não demonstrar. As pessoas às vezes dizem ‘não há que ter expetativas’, mas há sempre. Eu tenho um Ferrari, que é o João, e quando vou para uma competição penso sempre que podemos ganhar, porque estamos ali para ganhar. Mas jogos que me tenham custado… (longa pausa) Já chorei depois de vários, depois não vou logo ter com o João. Por exemplo em 2015, quando o João perdeu por 7-5 contra o Berankis no quinto set, no US Open. Foi o melhor ano do João em termos de vitórias e ele já tinha várias vitórias, mas chegamos lá depois de duas semanas em Cincinnati e Winston-Salem sem ganhar sets, nem em treino, e com sensações menos boas. Ao fim de 50 minutos o João estava a perder por dois sets a zero, e depois penso que break abaixo no terceiro, mas começa a lutar e ganha o terceiro, ganha o quarto e no quinto set tem 5-5 e muitos pontos de break, mas acaba por perder por 7-6 já com o Berankis com caibras, quase a não conseguir servir e o João super cansado. E aquela sensação de ter estado tão por baixo e depois tão perto, mas não conseguir ganhar… Esse jogo custou-me muito, muito, muito. Lembro-me que saí do campo e caíram-me as lágrimas. Foram quatro horas a sentir, a puxar e a tentar ir buscar aquilo e quando não deu houve a descarga emocional. Lembro-me que fui correr para o Central Park… E semanas depois o João faz final em São Petersburgo e acaba o ano a ganhar em Valência. O ténis é assim, tira-te de um lado e dá-te do outro. É sempre, sempre assim, mas esse encontro no US Open custou-me imenso.
E há outro, em São Paulo. No princípio do ano o João perdeu na primeira ronda do qualifying com o Alejandro Gonzalez, também num jogo equilibrado. E custou-me ver aquela imagem do João a sofrer, ele sofreu muito, estava a tentar de tudo mas as coisas não lhe saíam, era em altitude, num campo em que a bola ressaltava muito mal e ele estava a esforçar-se tanto, mas não conseguia e eu fiquei tão triste. Pensei ‘sou um péssimo treinador porque não estou a conseguir ajudar’ e senti que tinha de ser melhor, depois quando o jogo acabou pedi-lhe desculpa e nesse momento ele viu-me a chorar. Mas há muitos como este.
– E é com esses momentos que aprendes muito…
Aprendo muito mais do que quando se ganha, porque quando se ganha está tudo contente. Agora quando perdes vais ao telemóvel e não há nenhuma mensagem no WhatsApp, só a família e um ou outro amigo a dar-te força. Muitas vezes ganhamos ou perdemos por uma unha negra, um ponto de break, uma bola que bateu na tela, detalhes muito pequenos. Por isso é que eu tenho as minhas loucuras para fazer, os meus Iron Man e as maratonas. Recentemente fiz uma de 100km a correr, porque eu vou buscar… Aquilo é tão, tão difícil e faz com que eu tenha de me superar de uma maneira que depois me ajuda a superar-me dia a dia nos treinos. Porque se eu estou a sentir-me em baixo tenho de continuar, tenho de fazer mais 10 ou 20km e às vezes no ténis é isso, é mais esse esforço, esse bocadinho. As corridas de fundo têm-me dado essa estabilidade e penso que a tenho passado ao João. Estamos a falar de um jogador que está há muitos anos na elite.
– Num registo mais descontraído, lembras-te de alguma história insólita que se destaque entre tantos anos pelo circuito fora?
Temos muitas histórias curiosas, muitos momentos… Já viajámos para tantos sítios. Já quase fui mordido por um cão, quase levei um tiro nos EUA, mas assim de episódios em que o João esteja… (pausa) Como treinador, tal como como pai, temos de ter os dois lados, um de ser mais duro e saber o que queremos e o outro de ser flexível e ouvir o atleta.
Quando jogámos São Petersburgo, em 2013, o João vinha com uma boa dinâmica da Taça Davis e fez a primeira meia-final da carreira num torneio ATP. Chegou com muito pouco tempo para fazer a preparação mas ganhou ao Lorenzi, ao Stakhovsky e ao Tursunov, fez bons jogos em piso rápido indoor, mas muito seguidos e quando chegou à meia-final a movimentação já não era tão boa e perdeu muito fácil com o Garcia-López, penso que foi 6-1 e 6-1. Ele saiu do campo muito negativo, naquele calor do momento a dizer ‘eles são muito melhores do que eu, nunca vou conseguir chegar a uma final ATP, estivemos tão próximos, imagina como seria…’
Mas como havia a possibilidade de entrar como special exempt em Kuala Lumpur eu fui marcar um campo para o dia seguinte, porque o voo era só à noite e com a viagem íamos perder um dia e depois era preciso descansar. Então fui ao Players Lounge e marquei treino com o Bellucci para o dia seguinte de manha, às 11h. E à noite o João começa a dizer-me ‘temos de ir dormir, estou muito cansado e amanhã vamos treinar, temos de treinar, tenho de ser melhor’ e eu aí percebi como é que ele estava e respondi-lhe: ‘Olha, vamos sair à noite. Vamos esquecer o treino de amanhã, vamos mandar uma mensagem ao Bellucci e dizer que não te estás a sentir muito bem.’ E foi o que eu fiz, fui sair à noite com ele, tranquilo, para dançar, esquecer completamente o ténis e falar de outras coisas. Rimos, jogámos às cartas, tudo. Queria mesmo que ele fosse dormir o mais tarde possível e disse-lhe que só íamos sair quando os senhores viessem fazer a limpeza da sala. Então saímos já de madrugada, chegámos ao hotel, tomámos o pequeno almoço e fomos dormir. Acordámos já bem tarde e fomos diretamente para o aeroporto. Com a diferença horária ele não dormiu tão bem, mas depois no avião conseguiu dormir bem. Não falámos mais sobre ténis até chegarmos a Kuala Lumpur. Foi a maneira que eu tive de o fazer ter dois dias off, de o libertar completamente, de esquecer o ténis, as sensações e ele chegou a Kuala Lumpur animado, sempre a rir. E foi espetacular porque depois saiu dali uma semana brutal [n.d.r.: o primeiro título da carreira em torneios ATP].
– Isso é ser treinador, essa leitura…
Isso é ser treinador, exatamente. Já fizemos outras coisas muito parecidas. Nem tudo é exigência, nem tudo é puxar por eles. A parte mental e a diversão são muito importantes. Quanto mais diversão existir, e quando digo diversão é mesmo o rir, o estar feliz, mais criatividade vai haver depois. E quando se chega àquela parte do burnout de querer tanto, de começar a suar porque se quer muito e em que uma pessoa fica rígida tem de haver mais flexibilidade, também é preciso ver que há momentos e momentos.
– Aproveitando a tua deixa: Kuala Lumpur, Valência e Millennium Estoril Open, os três momentos que resultaram em títulos no circuito ATP. São momentos com um “cantinho especial”?
Sim… (pausa) São momentos bonitos, porque são os únicos em que quando acordas estás 100% tranquilo. De resto existe sempre a derrota, todas as semanas há uma derrota. Se é nas meias-finais ou na final pode doer um bocadinho menos, mas para mim dói mais porque ao mesmo tempo estás tão perto… Às vezes acordo às 4h da manhã a pensar no que faltou, no que preciso de saber para o ajudar mais ou que é que tenho de trabalhar. Vejo a carreira toda como um momento maravilhoso, é mesmo brutal. Muitas vezes não tenho palavras… Às vezes sou duro e exigente com ele e não lhe digo ou demonstro muitas vezes, porque tenho de me reservar. Muitas vezes digo-lhe ‘eu vou ser o teu melhor amigo e vais ter um amigo para a vida quando deixarmos de trabalhar, aí tu realmente vais conhecer-me a 100%, mas neste momento…’. Mas há muitos em que me apetece abraçá-lo e dizer-lhe ‘obrigado’, porque ele tem-me proporcionado momentos maravilhosos. Não diria só esses três, mas toda a carreira. O João já fez tantas meias-finais, terceiras e quartas rondas em torneios do Grand Slam e o facto de ganhar jogos, irmos passear, jantar, a sensação de estar num Grand Slam antes de um dia off e ficarmos os dois a ver ténis no hotel e a conversar. É o dia-a-dia. E todos estes anos juntos passaram tão rápido porque existe mesmo esta ligação de amizade e este prazer em fazer o que fazemos. Todos os momentos são especiais e têm o seu toquezinho. E quando me vejo a rever fotografias é de uma nostalgia… Desde a evolução como treinador aos nossos equipamentos, as marcas que nos apoiam, os penteados, as músicas que ouvíamos num determinado torneio… É espetacular, é espetacular e sou um privilegiado.
– Estamos a celebrar os 10 anos do Raquetc. A nível pessoal já partilhaste os teus desejos, e para o ténis português, algum desejo?
O desejo que tenho é que existam mais federados e mais crianças a jogar ténis. Que exista um maior esforço de todas as entidades. Se é o governo, se são as escolas, se é a federação, os próprios clubes, que não estejam à espera que as crianças venham ao ténis. Temos de ser nós a ir buscar as crianças, temos de ser nós a ir às escolas, aos pais. O que for, temos de as ir buscar. Precisamos de uma pirâmide muito maior, com mais jogadores, mais treinadores, maior formação para os treinadores e que as pessoas e os pais vejam o exemplo do João, do Frederico Silva, do Pedro Sousa, do João Domingues, etc., e que pensem que é possível viver do ténis. E, com o meu exemplo, que também é possível viver de treinador. Que os próprios treinadores também vejam que podem fazer carreiras e coisas muito bonitas e ter sensações tão bonitas. A carreira de treinador é fantástica e sinto-me realizado. Por isso eu peço isso, que os pais acreditem que é possível viver do ténis, porque há cada vez mais opções.