Federer de Basileia a Paris: 99 balões e uma ponta final a acompanhar, por Miguel Seabra (em Basileia)

O campeoníssimo suíço diz estar em Paris para ganhar o 100º troféu. O modo como venceu no passado domingo em Basileia motivou-o para uma ponta final da temporada que pode ser determinante a médio prazo. Os apontamentos de uma semana no St. Jakobshalle também trazem à baila a sua melhor pancada de sempre, a polémica da Taça Davis e um antigo campeão luso.

Por Miguel Seabra, em Basileia

Havia uma canção muito conhecida nos anos 80 chamada 99 Red Balloons e cantada por uma alemã gira chamada Nena – foi exatamente essa canção que me veio à memória ao ver Roger Federer celebrar em grande pompa o seu 99º título individual no St. Jakobshalle. Na comemoração de duas décadas de participações no torneio da sua cidade, o helvético fez aquilo que tinha mesmo de fazer: beneficiar de uma conjuntura competitiva favorável e somar um troféu mais (o nono em 14 finais perante o seu público) que o coloca perto da mítica marca dos 100 títulos.

Mas esse registo redondo está simultaneamente muito perto e tão longe. A concorrência desta semana no Masters 1000 de Paris é mais relevante e sê-lo-á ainda mais no ATP Finals de Londres. Sobretudo com Novak Djokovic de regresso ao seu melhor – e a garantia antecipada de regressar à liderança do ranking mundial a publicar na próxima segunda-feira. O sérvio é o principal favorito ao triunfo na capital francesa e depois na capital britânica; sê-lo-á também logo na primeira grande cimeira da próxima temporada, no Open da Austrália, o torneio do Grand Slam no qual ele apresenta o seu melhor registo e, ironicamente, aquele que Roger Federer venceu nas últimas duas edições. O suíço vai representar o seu país na Hopman Cup em Perth no arranque da nova época, pelo que as melhores hipóteses de conquista do seu centésimo troféu surgirão lá para o mês de Fevereiro. Talvez em Roterdão ou no Dubai.

É claro que, antes disso, Roger Federer pode ganhar em Paris, em Londres ou em Melbourne. Porque ele não cessa de nos surpreender. E, mesmo que não ganhasse mais qualquer encontro oficial na sua vida, a sua posição no panteão da modalidade não ficaria minimamente beliscada. Mas ainda há-de ganhar muitos e bons encontros até à sua reforma.  A consistência e a motivação é que podem não ser as mesmas – e foram essas as principais ilações que retirei em Basileia.

No St. Jakobshalle, começou sempre muito lentamente os seus encontros e teve frequentes lapsos de concentração, sintomas sempre muito associados à veterania. Alinhou muitas duplas-faltas, desperdiçou break-points, sofreu contra-breaks. Depois teve o mérito de ultrapassar facilmente a meia-final diante de um Daniil Medvedev que se tinha transformado em abóbora depois de derrotar na véspera Stefanos Tsitsipas ao bater da meia-noite e vencer na final um Marius Copil valente mas mentalmente impreparado para os momentos mais quentes: no tie-break do primeiro set, tentou libertar-se da bola cedo demais num amortie disparatado e esse ponto fez a diferença; no segundo set, a bola voltou a ‘queimar’ aos 4-4, com o romeno a parar duas vezes a jogada em chamadas que o Hawk-Eye mostrou serem boas.

Foi bom ver uma final entre jogadores da velha escola, depois de Federer e Copil terem batido nas meias-finais jovens opositores de estilo dito contemporâneo que até têm esquerdas (a duas mãos) melhores/mais consistentes do que as respetivas direitas. Tanto o suíço como o romeno utilizaram a sua própria esquerda em slice para cortar ritmo e desmantelar a direita dos opositores. Se no caso de Daniil Medvedev, que este ano ganhou três títulos, isso não foi particularmente surpreendente, já com Alexander Zverev se torna preocupante. Sascha é claramente o tenista mais laureado da nova geração, com a chegada ao top 3 e a conquista de três títulos Masters 1000, mas só este ano conseguiu finalmente atingir os quartos-de-final de um torneio do Grand Slam (Roland Garros) e a sua direita continua a parecer vulnerável. Philip Kohlschreiber – outro jogador da velha guarda, dotado de uma cirúrgica esquerda a uma mão que ele também utiliza muito bem em slice – já o tinha provado no US Open.

Na sala de conferências

Tive a oportunidade de abordar essa particularidade com Roger Federer na sua conferência de imprensa após as meias-finais. Nada lhe dá mais prazer do que abordar aspetos especificamente técnicos e táticos do jogo, o que mostra bem a sua paixão pelas nuances do ténis. Tive muitas outras questões para lhe fazer ao longo da semana, mas não é fácil fazê-las em Basileia: são permitidas apenas umas três ou quatro questões em inglês para toda a imprensa estrangeira e depois o grosso da conferencia de imprensa é feito em alemão e francês para os jornalistas locais.

Após a segunda ronda perguntei-lhe o que achava dos desenvolvimentos da nova Taça Davis. Tinha saído uma notícia no L’Équipe a afirmar que um conjunto de jogadores de topo haviam assinado um documento a dizer que não jogariam o novo formato da competição a partir do próximo ano. Tal como Sascha Zverev minutos antes, também Roger Federer me negou ter assinado o que quer que fosse. Pedi-lhe então um comentário sobre a situação, ficando surpreendido ao sentir alguma relutância da parte dele – até tentou virar a situação, perguntando-me a mim o que é que eu achava. Respondi-lhe que preferia o formato histórico mas que o parecer dele é que contava, sendo ele “um senador da modalidade e um líder de opinião”. Lá acabou por dizer que “percebo ambos os lados e que ambos os formatos têm aspetos positivos”.  E quando um colega suíço francófono pegou no tema e insistiu, ele disse-lhe mesmo (para minha estupefação) “não gosto que me pressiones dessa maneira”. Foi neutral, como os suíços têm reputação de ser…

O ‘problema’ é que Roger Federer nunca teve medo de não ser neutral. Depois percebi a sua renitência: existe um conflito de interesses que o leva a ser extremamente cuidadoso relativamente à organização de Gerard Piqué e à nova Taça Davis organizada pela Kosmos; é que a posição preferencial e cobiçada da Laver Cup (uma organização de Roger Federer) no calendário do circuito faz com que tenha de escolher muito bem as palavras de modo a que as suas citações não sejam aproveitadas para fomentar polémica…

Na celebração dos 20 anos de Roger Federer no ‘seu’ torneio de Basileia (fora todos os anos anteriores enquanto apanha-bolas), perguntei-lhe também sobre a pancada considerada a melhor da sua carreira pela Tennis TV – o smash/passing-shot em slice e suspensão no encontro com o antigo rival Andy Roddick na edição de 2002. Também acredito que seja a sua melhor pancada, porque é verdadeiramente extraordinária (ele antecipou tão bem que até abrandou antes de saltar para devolver o smash do americano com o seu próprio smash em passing-shot!), mas ele preferiu considerá-la uma das suas 10 melhores porque “depende muito do torneio, do adversário, do resultado e da situação no encontro”. Vale a pena ir vê-la no YouTube… e revê-la umas dez vezes.

Ainda no plano histórico, a recordação mais engraçada dos seus 20 anos de participações no St. Jakobshalle remonta à primeira participação – quando jogou no qualifying de 1997 com o também suíço Lorenzo Manta. Lembra-se que começou a servir no início do terceiro set e que algo lhe parecia não estar bem; a 40/0 percebeu que não devia ser ele a servir e disse-o ao árbitro; como sucede nestas ocasiões, todos os pontos jogados contam sempre – e Lorenzo Manta teve de começar servir a 0/40, sendo breakado de seguida. Mas ganhou o encontro. Roger Federer ainda se lembra do nome do árbitro… e não é um árbitro qualquer: Gerry Armstrong, o experiente britânico que tinha desqualificado John McEnroe no Open da Austrália de 1990.

Apontamentos lusos

O St Jakobshalle é um recinto de boa memória para o ténis nacional. Ultimamente, o court tem sido montado por Adriano Lago Pereira, o braço-direito de Javier Sanchez na GreenSet – a empresa que mais courts indoor prepara no circuito profissional ao mais alto nível (também é responsável pela superfície do Masters 1000 de Paris esta semana e do ATP Finals de Londres). Também tive a oportunidade de falar em português com um dos melhores árbitros do mundo, o brasileiro Carlos Bernardes. Sobre Carlos Ramos e a situação do US Open, claro.

Mas a principal referencia histórica ‘portuguesa’ que tenho para apresentar está associada ao antigo campeão nacional Sérgio Cruz, que na segunda metade da década de 80 se radicou na Academia de Ténis de Nick Bollettieri na Flórida enquanto um dos principais treinadores e era o responsável técnico de Jim Courier quando o americano venceu o seu primeiro título ATP – precisamente em Basileia, no ano de 1989 e ao cabo de uma épica final em cinco sets diante de Stefan Edberg.

Por coincidência, Sérgio Cruz vive há já muitos anos nos arredores de Basileia. Costumava ficar em sua casa quando vinha fazer a cobertura de Baselworld (a maior feira relojoeira do mundo, com mais de 100 edições!) e convidei-o para vir até ao torneio há três anos. Hoje em dia, e na sequência de alguns problemas de saúde, prefere ficar em casa. Mas o nome de Jim Courier figura em destaque no troféu – e com ele a recordação de Sérgio Cruz.

Como costumava dizer Sérgio Cruz, à medida que a idade avança mais frequente se torna um jogador acordar sem estar nas condições ideais, não recuperar da melhor maneira do encontro anterior ou ter lapsos de intensidade/concentração. Tem-se visto isso em Roger Federer nos últimos tempos – mas também se lhe via isso em 2014 e ele voltou a ser número um mundial. Só que agora já vai a caminho dos 38 anos. Vamos ver como se irá comportar nas próximas semanas… mas continua a ser um grande privilégio vê-lo jogar, em qualquer torneio e contra quem quer que seja. Aproveitem, porque ele não vai durar para sempre – ao contrário do seu legado, que será eterno.

Miguel Seabra com o conceituado árbitro brasileiro Carlos Bernardes e Daniel Simon Dreifuss
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