London Calling, Episódio 2 | “Em cinco sets”, por Miguel Seabra (em Londres)

Miguel Seabra está em Londres para acompanhar mais uma edição do torneio dos mestres, este ano oficialmente designado Nitto ATP Finals – e vai-nos deixar os seus pontos de vista em crónicas complementares à nossa cobertura do torneio. O título ‘London Calling’ é alusivo ao tema dos Clash com o mesmo nome. 

London Calling – Episódio 2

Por Miguel Seabra, em Londres

A segunda jornada do torneio de encerramento de época agora apelidado Nitto ATP Finals (Nitto é uma empresa japonesa de grande faturação em diversas áreas, mas o nome não dá grande nobreza à jóia de coroa do ATP World Tour…) proporcionou mais dois encontros equilibrados e sobretudo ditou o afastamento do número um mundial – na sequência da sua derrota no encontro inaugural do respetivo grupo, Rafael Nadal confirmou na sala de conferências de imprensa aquilo que já se perspetivava no court: que os seus joelhos não aguentariam muito mais. Aqui ficam as impressões da jornada, em cinco sets.

  1. Risos e sorrisos 

O primeiro encontro do dia, entre Grigor Dimitrov e Dominic Thiem, foi muito equilibrado mas a certa altura chegou a parecer um carrossel com breaks e contra-breaks. Tive a oportunidade de descer da bancada de imprensa até um lugar abaixo mais perto do court e fiquei rodeado de fãs… e a reação deles à evolução do marcador foi impagável: riam-se que nem perdidos, porque parecia que nenhum dos dois queria ganhar. Erros, duplas-faltas e alguns excelentes pontos até à decisão no photo-finish do tie-break favorável ao tenista búlgaro. Mas fiquei algo surpreendido por ver muitas clareiras nas bancadas durante o encontro vespertino de segunda-feira: normalmente, a bilheteira vende bem e com antecedência, como acontece com quase todos os eventos no Reino Unido devido à adesão incondicional e ao poder de compra local. O facto de Novak Djokovic e sobretudo Andy Murray terem anunciado com antecedência o término das respetivas temporadas pesou significativamente. As pessoas andam a ficar mal habituadas com esta excecional geração dos Big 4 e não estão a ser suficientemente rápidas no ‘abraçar’ da nova geração.

  1. Dois bons rapazes

Pessoalmente, gosto muito de Grigor Dimitrov e Dominic Thiem. Dois rapazes extremamente corretos, educados, de boa índole e que no final de uma dura refrega entre ambos mostraram ser isso mesmo através do abraço fraternal que deram. No que diz respeito ao ténis propriamente dito, as diferenças são maiores. O austríaco, de 24 anos, continua a jogar demasiadamente recuado no court, mas será que alguma alteração nesse posicionamento irá desregular os mecanismos a que está habituado e que lhe deram reconhecido sucesso? Parece-me estar numa encruzilhada e mais uma vez estagnou a partir do meio da temporada (tal como a sua namorada Kiki Mladenovic, que está com ele aqui em Londres) após uma boa primeira metade da época. Num determinado prisma, Guenter Bresnik parece-me ser o treinador ideal para ele, mas se pensarmos na evolução de jogo já não estou tão certo. Quanto ao búlgaro, de 26 anos, já se conhece o seu estilo mais versátil e variado; havia muitos búlgaros nas bancadas que não se cansaram de gritar o seu nome (e o seu diminutivo ‘Grisha’) e pareceu sentir a responsabilidade de se tornar no primeiro búlgaro a ganhar um encontro no torneio dos mestres. A sorte acabou por lhe sorrir porque foi mais audaz. Ficou muito emocionado.

Adeptos búlgaros no Nitto ATP Finals.
  1. Uma lebre belga

Antes de abordar a desistência de Rafael Nadal na competição convém dar mérito ao vencedor do encontro noturno – David Goffin é dos jogadores mais subestimados do circuito, possivelmente devido ao seu aspeto franzino e visual juvenil. A direita melhorou muito e a sua esquerda é uma maravilha em combinações cruzada/paralela, sobretudo quando resolve atacar ao longo da linha. Bate cedo na bola e tem trajetória planas que são frequentemente profundas. Mais impressionante ainda é a sua rapidez: durante o encontro estive a reparar que muito raramente a bola bate duas vezes do seu lado, seja em amorties seja em ataques no fundo do court com acelerações para bem longe dele. Claro que há muitas ocasiões em que ele não consegue devolver a bola, mas chega lá na maioria dos casos. Reparem bem na próxima vez que o virem jogar. O triunfo sobre Rafael Nadal, mesmo sendo óbvio que o espanhol actuou diminuído fisicamente, foi em termos absolutos o maior triunfo na carreira do sósia belga de Bryan Adams e também serve de lenitivo ideal para a final da Taça Davis na próxima semana, diante dos vizinhos/rivais franceses…

  1. O imbróglio de Nadal

Rafael Nadal surgiu em Londres seguro na liderança do ranking mundial e numa condição física inferior – depois de a desistência no Masters 1000 de Paris deixar antever que não chegaria à cimeira de encerramento da época com a preparação ideal. Não jogou bem diante de David Goffin e falhou muito tanto de direita como de esquerda, mas soube elevar o nível de jogo nos momentos cruciais (aqueles winners de esquerda!) e a sua reconhecida competitividade também teve o condão de fazer tremer o belga, que em várias ocasiões desperdiçou breaks de avanço e não aproveitou quatro match-points na segunda partida (três deles consecutivos); as dificuldades na deslocação e nos apoios pareceram óbvias, tal como o reflexo de tocar no joelho direito desde logo mostrou que o maiorquino não teria grande futuro no único grande evento que nunca logrou ganhar: venceu 75 títulos individuais, incluindo 16 Grand Slams, 30 Masters 1000 e uma medalha de ouro olímpica, fechando a temporada como o número um mundial mais idoso no fim do ano desde a incepção do ranking computorizado em 1973. Mas nunca ganhou o torneio dos mestres e essa lacuna curricular parece mesmo nunca ser colmatada… mas Rafa, tal como Roger, já nos habituou às proezas mais inverosímeis. E na sala de conferências de imprensa foi mais eloquente em espanhol; confirmou que a participação em Londres foi contra o conselho da sua equipa técnica em não jogar porque esperou que a sua condição melhorasse e porque se sentia na obrigação de jogar pela importância do torneio e porque sabia que os fãs queriam vê-lo após a ausência em 2016. “Vim porque quis, a mim ninguém me aponta uma pistola para jogar”. Relativamente a 2017, disse que “teria pago muito dinheiro para ter a época que tive; fui feliz, jogo ténis para ser feliz e esta temporada fez-me muito feliz”.

Guillermo Salatino e Miguel Seabra
  1. Grande Salata

O meu amigo Guillermo Salatino recebeu na tarde de segunda-feira das mãos de Chris Kermode, o CEO do ATP World Tour, o Ron Bookman Media Excellence Award – o prémio anualmente atribuído pelo ATP World Tour a jornalistas que se destacam. Se não estou em erro, foi a primeira vez que o galardão consagrou um jornalista latino-americano, porque o ATP World Tour tem o hábito de o entregar a anglo-saxões ou a chineses (…). Fiquei muito contente: Salata é um amigo de mais de 25 anos e muitas vezes partilhei casa com ele em Wimbledon. Foi um bom jogador de ténis antes de passar para o outro lado da barricada e é um digno representante da velha guarda que não quer saber do politicamente correcto: diz o que pensa, é crítico e não tem medo das palavras embora tenha atenuado um pouco a sua mordacidade. Ainda me recordo do modo como, no final da década de 90, definia Lindsay Davenport nos comentários… chamava a alta norte-americana de Godzilla e Frigorífico de Duas Portas, algo que hoje em dia seria impensável! Começou a cobrir o circuito em 1977 e diz que nos últimos 40 anos não precisou de trabalhar porque tem feito o que gosta; no seu currículo constam 137 torneios do Grand Slam in loco. Um senhor. Melhor: um señor, Don Salata!

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