O duelo Nadal-Sousa dissecado por quem os conhece melhor

Fotografia: AELTC/Tim Clayton

Para além da análise de Frederico Marques e da apreciação de Rafael Nadal, aqui ficam as considerações de alguém que viveu um determinado conflito de interesse na passada segunda-feira em Wimbledon: Francis Roig, primeiro responsável técnico do português quando ele se mudou para Barcelona e segundo treinador do campeoníssimo espanhol – que hoje joga nos quartos-de-final com o perigoso Sam Querrey. 

Miguel Seabra, em Wimbledon

Quando saímos de uma pequena sala de entrevistas onde estivemos a falar sobre o encontro com o Rafael Nadal, o Mats Wilander viu João Sousa e disse-lhe: “Parabéns, fizeste um grande torneio”. E foi essa a opinião generalizada. Os meus próprios colegas da imprensa vieram dizer-me o mesmo. Todos por aqui sabiam que tinha sido a primeira vez que um português tinha atingido os oitavos-de-final de Wimbledon. E todos sentiram que seria extremamente difícil para quem quer que fosse ultrapassar um Nadal que já havia sido implacável na ronda anterior diante do Jo-Wilfried Tsonga. Dois encontros nos quais ele não concedeu um único breakpoint; dois encontros que finalizou com um às.

Foi curioso termos dado de caras com o Mats Wilander porque tinha pensado nele imediatamente após o primeiro ponto do duelo ibérico que abriu a programação de segunda-feira no Centre Court. Há já algum tempo, por volta de 2003, fiz-lhe uma longa entrevista em Roland Garros e no final pedi-lhe para dizer quatro ou cinco palavras sobre cada um dos seus maiores rivais. E sobretudo retive aquilo que disse sobre o seu compatriota Stefan Edberg: “logo no aquecimento eu via se iria ganhar ou perder o encontro”. Foi a única coisa que disse sobre Edberg, completamente inesperada. Nesta passada segunda-feira, o Rafa iniciou o duelo ibérico logo com um ponto muito completo, a encher o court com duas tremendas esquerdas cruzadas, seguidas de uma direita cruzada e outra descruzada para logo depois concluir com um amortie de esquerda com sidespin. Virei-me para o meu colega do lado, o veterano jornalista americano Steve Flink (autor de dois livros que vale a pena comprar: ‘Os Melhores Encontros do Século XX’ e ‘Os Melhores Encontros de Todos os Tempos’), e disse-lhe: “o Rafa hoje não vai dar hipóteses”.

Nunca antes tive um instinto parecido ou arrisquei fazer vaticínios. Sou daqueles que se recusa a fazer prognósticos para além das atribuições de favoritismo normais assentes no currículo de um jogador, no mano-a-mano ou no tipo de court. Acredito mesmo que num bom dia qualquer jogador pode derrotar outro a meio de um torneio do Grand Slam porque já vi e comentei décadas de torneios do Grand Slam. E nem foi por ter ou não fé no João. Naquele ponto o Nadal pareceu-me tão afinado e preparado que fiquei convencido. Não foi no aquecimento, como sucedia com o Wilander e o Edberg, mas foi no primeiro ponto. O resto do embate mostrou que o maiorquino estava mesmo intratável; o João usou depois a palavra “demolidor” e ainda referiu que gostava de se ter sentido um pouco mais fresco fisicamente para fazer frente a um adversário tão exigente. Mais tarde, quando encontrou o seu antigo mentor Francis Roig, falaram muito da qualidade da esquerda cruzada apresentada por Rafa. E sobretudo sentiu-se uma grande cumplicidade entre todos; já treinaram muitas vezes juntos, já tiveram períodos específicos de treino em Maiorca, conhecem-se todos há muitos anos e Francis Roig foi uma figura relevante nas carreiras do João como do Frederico Marques…

A OPINIÃO DE RAFAEL NADAL

Já é público tudo que o vimaranense disse sobre o encontro, embora de um modo mais genérico e também colocando naturalmente um acento positivo no seu percurso, no seu novo recorde pessoal em Wimbledon e no orgulho de ter levado o nome do seu país à segunda semana do mais prestigiado torneio de ténis do mundo. Não sei se o que o Rafa disse sobre o encontro foi divulgado, porque lhe fiz uma pergunta específica na parte espanhola da conferência de imprensa que não fica registada nas transcrições. Mas aqui está o que me disse:

“O João é um jogador muito competitivo e quando se encontra numa dinâmica positiva de ganhar encontros num mesmo torneio ou torneios seguidos torna-se muito perigoso – e para mais ganhou em três sets aqui ao Marin Cilic, que é um dos jogadores de máxima exigência nesta superfície”.

“É verdade que às vezes o João tem momentos irregulares ao longo do ano e talvez seja por isso que ainda não está mais em cima no ranking. Mas é um jogador que sempre foi dando passos em frente na sua carreira, um jogador que sempre foi melhorando o seu jogo. Para mais, vi-o jogar há duas semanas em Halle com o Coric e acabou a perder no tie-break do terceiro set, mas a nível de jogo considero que até esteve melhor – pelo que sabia que era um encontro no qual eu tinha de estar concentrado e agressivo. Quando ele consegue impor a direita dele é muito perigoso, tem muito boa direita e é muito rápido. Tentei mudar a dinâmica do ponto com algumas esquerdas cortadas e atacar quando foi possível”.

A ANÁLISE DE FRANCIS ROIG:

Depois fui falar com Francis Roig, a quem trato sempre por ‘Campeão das Ilhas Portuguesas’ por ter ganho títulos em Challengers na Madeira e nos Açores entre 1988 e 1990 – e que tem sido o treinador secundário de Rafael Nadal há mais de 10 anos, viajando antes com o maiorquino quando o Tio Toni não viajava e acontecendo o mesmo agora quando isso sucede com Carlos Moya, mas sempre coincidindo com o técnico principal nos eventos do Grand Slam. É também alguém que conhece muito bem o João por tê-lo recebido na sua academia Barcelona Tennis Total quando transitou de Guimarães para a capital da Catalunha.

“Primeiro do que tudo tenho de dizer que foi um encontro algo estranho para mim, porque o João continua na minha academia, está com o Fred e estão a fazer feito um bom trabalho. Eu trabalhei com o João desde pequeno e damo-nos todos muito bem, quando tenho tempo gosto de estar com eles, pelo que foi um momento estranho para mim vê-lo como adversário neste encontro. Mas é assim o ténis. Por outro lado, estou contente por vê-lo nos oitavos de Wimbledon. Merece, é um bom rapaz, dedicou toda a sua vida ao ténis, é um miúdo que chegou a Barcelona com 14 anos, que estudou, viveu sozinho, é um exemplo para muitos miúdos. E teve de defrontar um Rafa que está a jogar o seu melhor ténis em relva, que está a jogar com o máximo de intensidade e velocidade em cada ponto, que não te dá nada, que coloca muita agressividade e potência em cada golpe e em cada ponto, que está a jogar muito bem de direita e de esquerda, que está a vir para a frente, que está a atacar muito – ou seja, não te oferece nada e exige o máximo. Pelo que foi um encontro difícil para o João”.

“Com o Rafa viu-se que há demasiada diferença entre ambos neste momento. Nem é tanto um tema técnico ou táctico. É um tema de intensidade e isso aconteceu com o João como acontece com muitos outros jogadores que defrontam o Rafa. Ele está a jogar com muita agressividade, quando o adversário se dá conta já está a perder por 3-0 ou 4-0. Nenhum outro jogador mete tanta intensidade nos encontros. O João tem de melhorar um pouco na esquerda e no serviço. Com a direita às vezes joga demasiado depressa porque não quer que ataquem a sua esquerda e por isso sente a necessidade de atacar logo com a direita. O serviço também pode ficar mais sólido. Pode melhorar a resposta, tem momentos em que responde bem, mas tem momentos em que dá muitos presentes. Mas vejo-o capaz de continuar a melhorar e ele pode jogar em todos os pisos. Mexe-se bem, sente bem a bola, tem bom timing, joga relativamente fácil e tem uma velocidade de deslocação e de bola que lhe permite defrontar os melhores. Não pode é perder tantos encontros tontos durante o ano. Isso no final do ano deixá-lo-ia com um melhor ranking e dar-lhe-ia mais tranquilidade”.

“A presença nos oitavos-de-final de Wimbledon vai ser positiva para o João nos próximos torneios. Para o João melhorar não tem propriamente de jogar melhor nos encontros com os melhores do mundo. Tem de ter mais regularidade ao longo do ano, jogar a um nível alto durante mais torneios seguidos. Tem boas fases e fases menos boas. Quando tem rachas más perde muitos encontros seguidos e isso reflete-se no ranking – e depois no final do ano acaba a 40 ou 45 quando podia acabar a 20 ou a 25”.

“Sempre que vejo o João num encontro difícil sinto que tem jogo para defrontar um grande rival, mas o seu campeonato não é bem este, tentar jogar melhor com os melhores – é sobretudo ganhar mais encontros tontos que tem durante o ano. Nunca se sabe onde um jogador pode chegar, ele tem muitos anos pela frente, fisicamente está muito bem, disfruta a jogar ténis e no futuro pode fazer coisas ainda melhores do que já fez. Ele é muito competitivo, mas por vezes tem de controlar esse caráter que sempre teve e que lhe é muito útil mas que por vezes não consegue controlar. Isso permitir-lhe-ia melhorar a confiança Quando está bem tem muita confiança e muita fé, quando não está bem vê tudo negro. Tem de encontrar um ponto médio e pouco a pouco vai encontrando esse equilíbrio. Ainda tem muitos anos pela frente”.

Fotografia: AELTC/Tim Clayton

A ANÁLISE DE FREDERICO MARQUES

Também para Frederico Marques foi um encontro que teve uma envolvência muito peculiar.

“Foi um ambiente especial, com dois jogadores que se conhecem bastante e nós como treinadores também nos conhecemos muito. Neste caso, o Francis teve um pouco mais de vantagem porque conhece mais o Nadal – está muito por dentro do jogo dele, das dúvidas dele e das coisas boas e más que tem – e também conhece o João, ainda continua a trabalhar connosco, eu continuo a falar muito com ele, e nele é um dos dois ou três mentores que tenho no circuito e com quem falo sempre que posso”.

“Sabíamos que os seis primeiros jogos do encontro seriam fundamentais para a habituação ao campo e para não deixar o Nadal passar para a frente – porque jogadores como ele quando se vêm por cima são praticamente imparáveis. O Nadal quando treina imprime uma velocidade de bola muito forte e quando chega ao jogo reduz um bocadinho, mas quando se vê por cima passa ao nível de quando está a treinar e não dá hipóteses. E vimos um Nadal muito forte, tacticamente surpreendeu-nos um bocadinho. Apresentou uma esquerda cruzada fortíssima – pensamos que podíamos ganhar alguma iniciativa por ali, para depois atacar com a direita paralela e retirar-lhe tempo mas não foi possível. Está a servir bem, a responder bem, a primeira pancada dele a seguir ao serviço e à resposta está muito forte”.

“É um adversário extremamente complicado. O Federer, em termos de velocidade de bola, consegue desequilibrar qualquer jogador e às vezes tem jogos de serviço que duram quarenta segundos, não dá ritmo nenhum ao adverário; mas nos jogos de resposta oferece um pouco mais e isso dá sempre para ganhar alguma confiança e algum à-vontade. Com o Rafa não, ele joga sempre com a mesma intensidade esteja 4-0 ou 5-0, desde o primeiro ponto, estar 0/40 ou 40/15 para ele é exatamente igual e ele não dá nada. Não deixa respirar. Não dá nada de borla. E os adversários dele entram uma zona para a qual não estão habituados. Para mais é canhoto e sobretudo na relva não é fácil responder a serviços de canhotos”.

“De fora, pode custar um bocadinho compreender algumas fases menos boas do João ao longo do ano. Temos de ver as duas partes. Há jogadores mais estáveis, que passam sempre algumas rondas em todos os torneios mas ficam por aí. Há outros que podem perder quatro primeiras rondas, mas depois também fazem três quatro finais num ano. O João é uma pessoa muito intensa, um jogador muito intenso, gosta muito de competir; por vezes há algumas derrotas que lhe custam digerir e isso por vezes arrasta-se para outras semanas. Ele vive muito a competição e custa-lhe estar parado. Às vezes seria melhor não jogar tantos torneios seguidos, mas é a maneira dele ser, o João sente-se bem a jogar, sente-se útil e mesmo que às vezes não se sinta fresco ele gosta de estar lá e mesmo a perder ele está a trabalhar outras coisas. A carreira é muito comprida e ele está cada vez mais maduro. Penso que o melhor ainda está para vir”.

“Foi o nível do Nadal que trouxe inconscientemente a falta de frescura falada pelo João – por a velocidade de bola ser distinta, pela recuperação entre pontos. A força de pernas que é preciso gerar em cada jogada para se fazer mossa face ao Rafa pode criar essa sensação de cansaço diferente de outros jogos. Mas não foi por aí, pela parte física. O Rafa foi superior em quase todos os aspectos de jogo. O João está bem fisicamente e se tivesse de jogar mais quatro ou cinco sets em pares logo a seguir não teria qualquer problema em fazê-lo”.

“Logo a seguir vêm três torneios em terra batida: Bastad na próxima semana, Gstaad e Kitzbuehel – mas vamos ver se ainda iremos a Kitzbuehel. Depois passamos para o Canadá e para os Estados Unidos. Vamos tentar aproveitar esta boa dinâmica conseguida aqui em Wimbledon”.

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