Esplendor na Relva | “Primus Inter Pares”, por Miguel Seabra (em Wimbledon)

É frequente perguntarem-me qual dos quatro torneios do Grand Slam é o meu preferido – e respondo sempre que seria o mesmo que escolher um de quatro filhos: todos os quatro pilares da modalidade são fascinantes e apresentam uma personalidade muito vincada que também é bem diferenciada entre si, sendo que há uns melhores em certos aspectos do que os outros… havendo um em particular que é incontornavelmente mais especial do que os restantes. Wimbledon é mesmo primeiro entre iguais. E recordo-me disso todos os dias, quando venho para o All England Club e depois quando regresso à casa onde estou com vários colegas, em Southfields.

Tal como a esmagadora maioria dos elementos da imprensa acreditada (e também dos jogadores e respetivos acompanhantes, para além dos árbitros e juízes-de-linha), fico hospedado numa casa alugada situada na zona circundante do All England Club – sendo que o clube fica no centro de um triângulo que tem por vértices Southfields, Wimbledon e Wimbledon Village. Desde a viragem do milénio que tenho ficado alojado na cidade de Wimbledon, regressando este ano à zona de Southfields onde costumava pernoitar na década de 90. E o caminho mais curto desde a casa onde estou – com amigos veteranos da imprensa fotográfica, como o ítalo-francês Gianni Ciaccia e o espanhol Miguel Angel Zubiarrain, assim como jovens colegas da era da internet, como o também espanhol Rafael Plaza e outros – é através de Wimbledon Park, onde são montadas as tendas da famosa Wimbledon Queue. Todos os dias, de manhã e à noite, vejo centenas a milhares de pessoas (há dias em que chega a haver mais de mil tendas montadas) ordenadas numa fila organizada onde o toque de maior ‘desrespeito’ é, como cheguei a escutar aquando das minhas passagens bi-diárias, um flato soltado ali (é humano…) ou um gemido mais sensual acolá (sabe melhor passar a noite bem acompanhado).

Toda a logística de apoio à Wimbledon Queue montada pelo All England Club é irrepreensível e comporta dezenas de elementos que se revezam 24 horas por dia, sendo que o trajeto final da fila até às imediações do torneio é tornado mais agradável por estaminés montados por várias das marcas associadas ao torneio. Não há nada de parecido em qualquer dos outros torneios do Grand Slam. Mas essa é a parte organizativa que me provoca maior admiração; depois há toda a vertente dos fãs que consolida a certeza de que Wimbledon é mesmo a meca do ténis e destino de culto: os peregrinos não se importam de ficar horas a fio ou dias/noites religiosamente à espera, porque sabem que a catedral está ali perto. E a Wimbledon Queue é, por si só, uma experiência inolvidável.

Caso consigam arrebanhar as poucas centenas de bilhetes que são disponibilizadas diariamente, os fiéis sabem que um Ground Pass vale mais do que em qualquer outro torneio do Grand Slam: há mais encontros para ver nos courts exteriores, porque há menos encontros nos courts principais (normalmente são três) para que a relva seja poupada. Para mais, o All England Club é um local aprazível que valoriza a estadia e torna a peregrinação memorável, seja a ver ténis nos campos principais (e o Centre Court é mesmo um santuário), seja nos mais modestos courts secundários ou até mesmo em Aorangi Park a ver encontros no ecrã gigante enquanto se pique-nica.

Nem sempre fui tão elogioso relativamente a Wimbledon; na verdade, nos primeiros anos em que comecei a vir ao torneio, na década de 90, havia detalhes que chegavam a ser detestáveis: as instalações eram algo decrépitas, havia uma excessiva hierarquização, o complexo de superioridade era asfixiante e a maior parte dos elementos da organização tinha ainda aquela mentalidade colonial britânica que os fazia olhar para nós como se fossemos uma espécie inferior do ultramar (“from overseas”, como diziam). Tudo mudou com a viragem do milénio: as instalações melhoraram significativamente em todo o recinto, nomeadamente com a inauguração do Millennium Building que inclui toda a zona para a imprensa, a mentalidade evoluiu e tornou-se muito mais europeia/internacional com o emergir de novas gerações à frente dos destinos do clube – para além de o torneio estar constantemente a aperfeiçoar-se em todos os departamentos, ano após ano, fazendo parecer que nada muda porque o maior negócio de Wimbledon é mesmo… a tradição.

E agora, o importante…

Serve todo este introito para dizer o seguinte: esqueçam as polémicas relacionadas com o estado dos campos, com o anacronismo de uma superfície como a relva, com o escalonamento de encontros masculinos ou femininos nos campos principais ou com a distribuição deste ou daquele jogador entre o Centre Court e o Court 1. A maior parte das polémicas são fomentadas por uma imprensa sensacionalista extremamente agressiva (os tablóides britânicos fazem o Correio da Manhã parecer um menino de coro, já agora: a suposta ‘infidelidade’ de Novak Djokovic é um tema requentado, fala-se disso nos bastidores desde o final de 2015/inícios de 2016) e todo o eco provocado pelos fãs de determinados jogadores nas redes sociais. Com a internet e a legião de indignados que faz com que o politicamente correcto seja a maior tirania do século XXI, todos se julgam detentores de uma voz que na esmagadora maioria dos casos não é avisada.

Em verdade vos digo (e escolho essa expressão para aumentar o sentido litúrgico desta epístola): os senhores do All England Club não são nenhuns papalvos. Pelo contrário: consideram todos os cenários possíveis e imaginários (muitos deles impossíveis até de imaginar pelo adepto comum que vê as coisas de longe sem saber todos os contingentes televisivos e de segurança a ter em conta, para só mencionar esses) antes de tomarem qualquer decisão – e, como se pode constatar, tomam frequentemente as decisões mais acertadas porque Wimbledon é de longe a marca mais sólida e rentável que existe no ténis; o torneio tem uma pujança económica extraordinária e continua a afirmar-se como uma instituição à parte. Lá está: Primus Inter Pares.

Por isso, a próxima vez que acharem que é injusto haver menos encontros femininos nos courts principais, pensem no que os fãs que pagam um balúrdio pelo bilhete para o Centre Court e Court 1 querem mesmo ver e que dois embates masculinos e um feminino asseguram um mínimo de 8 sets e um máximo de 13, contra um mínimo de 7 e um máximo de 11 se a ordem fosse invertida; que para mudar subitamente encontros protagonizados por grandes vedetas de um court grande para outro arrastaria uma corrida de milhares de espetadores que colocaria em causa a segurança de todos; que os courts podem não estar bons por causa da canícula anormal que se fez sentir e não por falta de tratamento; que não há mais encontros agendados em cada court precisamente para não massacrar uma superfície que por si só é a mais delicada mas também a mais fascinante/tradicional do ténis; e por aí fora.

Os senhores do All England Club sabem o que fazem e têm razões para todas as tomadas de decisão: sim, também podem falhar aqui e ali, sobretudo quando há situações inesperadas. Mas, comparativamente com os outros dirigentes dos eventos do Grand Slam, também são como Wimbledon relativamente ao US Open, a Roland Garros e ao Open da Austrália: Primus Inter Pares.

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